Entrelaços de História de Educação

Amarrações e correspondências entre os vários saberes e fazeres de cultura na história da arte/educação.

Como Tecemos
Por Denise Mendonça

Para tecer amarrações e correspondências entre os vários saberes e fazeres de cultura, arte e educação protagonizados pela sociedade civil, fora dos espaços da escola, nos últimos anos no Brasil é importante perceber que o que produzimos é fruto de um movimento histórico, com lutas e conquistas sociais.

…as correlações dos movimentos culturais com a arte e com a educação em arte não acontecem no vazio, nem desenraizadas das práticas sociais vividas pela sociedade como um todo. As mudanças que ocorrem são caracterizadas pela dinâmica social que interfere, modificando ou conservando as práticas vigentes. (1)

Por meio de um breve recorte do tempo, destacarei alguns fatores que contextualizam as mudanças ocorridas no âmbito das práticas arte/educativas realizadas no chamado campo da educação não formal.

De 1930 a 1970, essas práticas foram influenciadas pelos fundamentos da psicologia e da psicanálise, que trouxeram para o centro da cena a importância da arte como manifestação da individualidade. Em uma perspectiva humanista, modernista, tais práticas potencializam a espontaneidade, a autoliberação, a originalidade, a criatividade e a livre expressão do indivíduo, enfocando o aspecto experimental da arte como importante via de sensibilização e comunicação do ser humano. Nesse período, as ações eram realizadas pelas escolinhas de arte e ateliês espalhados pelo Brasil, como atividade extraclasse. O Movimento Escolinhas de Arte (MEA) teve um papel de extrema relevância entre os anos 1950 e 1970 para a democratização e consolidação da arte na educação.

Nos anos seguintes, por causa da conjuntura política do Brasil e do mundo, a partir da redemocratização do país e da luta pelos direitos sociais, políticos e civis, as práticas de arte/educação foram mudando o foco. Da concepção de indivíduo voltado às suas visões de mundo, passa-se à concepção de sujeito sócio-histórico-cultural, enraizado em sua comunidade. Tais práticas passaram a dialogar com a área dos direitos humanos, trazendo para o centro da cena a importância da arte como manifestação da coletividade. Em uma perspectiva multiculturalista e cognitivista, valorizavam o aspecto político da arte. Nessa época, consolidam-se as chamadas organizações não governamentais, muitas delas tendo a arte na centralidade de suas ações, a maioria com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento humano de crianças e jovens de baixa renda em situação de vulnerabilidade social.

É também nesse período, marcado pelas tensões dos debates acerca do ensino de arte na escola, entre visões modernistas e pós-modernistas, que surgem pesquisas e metodologias da arte/educação que vão influenciar as práticas desenvolvidas em vários outros espaços culturais. São criados nos museus programas educativos, que vêm propiciando, a partir daí a articulação dos fazeres artístico-educativos de diferentes espaços de educação.

A partir de 2000, novos conceitos e concepções entram na cena. A importância da arte na construção das identidades culturais e na valorização da diversidade cultural, da interculturalidade e da garantia da cidadania cultural. As práticas arte/educativas protagonizadas por diversas instituições da sociedade civil passam a ser fundamentais na construção das políticas culturais no país. Destaca-se nesse âmbito, o Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, com o reconhecimento de pontos de cultura em todo o Brasil – iniciativas que já vinham desenvolvendo práticas culturais e passaram a ser valorizadas e apoiadas pelo Governo Federal. Nesse sentido, é a partir desta última década que se consolidam e se fortalecem práticas arte/educativas que vêm contribuindo para a construção de novas políticas nas áreas de cultura, arte e educação.

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Entrelaços de saberes e fazeres

É extraordinária a riqueza da rede de iniciativas que se estende pelo Brasil acreditando na arte como caminho de transformação social e cultural. Mesmo sabendo que existem ainda muitos equívocos e distorções em determinados segmentos, por exemplo: quando a arte se torna no imaginário de muitos um poderoso instrumento de controle ou de ocupação de territórios emocionais, afetivos e espirituais de crianças e adolescentes, com a justificativa de que, ao participar de programas e projetos de arte, meninos e meninas carentes estarão a salvo da marginalidade. Ou quando se utiliza a arte com fins unicamente promocionais, criando talentos artísticos a toque de caixa, ou buscando autopromoções à custa dos dramas da infância e da juventude.

Assim mesmo, o cenário brasileiro se apresenta com novos contornos que nos reanimam. Cultura e educação, depois de décadas divorciadas, iniciam conversas com promessas de mudança e articulação. Iniciativas se multiplicam pelos quatro cantos do país, constituindo um rede-teia de grande importância, que vem impulsionando novas maneiras de desenvolvimento e investimento no âmbito da cultura.

Por parte da iniciativa privada, temos visto o surgimento de arranjos que se apresentam positivos no fomento, na produção e na difusão da cultura e da arte, numa perspectiva mais abrangente e democrática. Por tudo isso, já é possível verificar que tanto a arte como a cultura não são mais vistas como acessórios da condição humana, e sim seus substratos.

Em que contextos, nexos, sentidos (conexos) se fundamentam, se fundam essas iniciativas como projeto social, cultural, artístico no âmbito da educação praticada no Brasil? Possivelmente, não existem respostas únicas, mas há algumas semânticas que aproximam e entrelaçam fazeres e saberes que vêm marcando nosso tempo.

O primeiro ponto é que toda e qualquer ação que envolva a arte na perspectiva do desenvolvimento humano, nas dimensões ética e estética, é eminentemente política. Quando o caminho é processual, com intencionalidade que provoque o sentir, o fluir, a expressão, o conhecimento e a contextualização, a educação por meio da arte é disparadora de encontros e confrontos, na medida em que revela diferenças, singularidades, identificações, modos de ver e de se saber no mundo.

A cultura/arte permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos. (2)

O segundo ponto é que são iniciativas bordadeiras. São processos partilhados em muitas dimensões, geralmente com largueza e liberdade de opções, mas que precisam constantemente ser pensados com delicadeza e justeza para não se perderem no meio de tantas possibilidades de ação. Por serem espaços construídos pelo sentido plural, pela afetividade e confiança, constituem-se lugares movidos pela paixão de um bem comum.

Aprendi com a família Dumont, bordadeiras de Pirapora (MG), três aspectos que fazem parte dos princípios de seus processos de criação, que me levaram a compreender com outra lente os modos de se fazer a arte/educação, no âmbito da educação, nestes últimos anos.

1. A compreensão do sentido verdadeiro do avesso dos bordados, não como desalinhos e arremates dos pontos. Mas como a interioridade do que se desvela belo no desavesso, ou direito.

A arte tem seu alimento no que apreendemos e experimentamos da e na vida, mas é esse mesmo alimento que ganha forma, e se faz conhecido quando o transformamos em música, desenho, escultura, drama, dança. Avesso e direito, nesse sentido, são partes do mesmo processo, movimentos e deslocamentos de interioridades e exterioridades de nosso imaginário, sensibilidades e inteligências que vão compondo novos horizontes.

2. O “trans-bordamento” dos limites do desenho não significa sentidos desmanchados.

Por meio da arte se torna possível a elaboração de novas narrativas e representações sobre como os sujeitos percebem e compreendem a si mesmos, os outros e seus ambientes (familiares, comunidade, escola, grupos de amigos). É possível verificar maneiras outras de enfrentamentos de seus cotidianos, de como traduzem a condição de existência projetando desejos futuros, encorajando-se para conquistar espaços de direito por direito. Todo esse processo de desfazimentos e refazimentos de ideias e percepções – jogo em que a criação em arte envolve e desenvolve – implica tomada de decisões e escolhas. Há de se ter coragem para mudar desafiando os limites (percepção de si) que muitas vezes são impostos e aceitos quase como uma fatalidade, expressos como: “nasci assim, não tem jeito, não posso mudar”. Mas mudar não significa perder identidades. É preciso transbordar certos limites e realizar travessias.

3. O processo coletivo (uma mesma peça é bordada a muitas mãos) só é possível com a clareza do sentido comum. Mesmo com escolhas específicas e definidas do que será bordado, os desmanches do que já foi bordado por outro é autorizado. É sinal de pertença e correspondência.

Na arte, os processos de criação ainda que realizados por sujeitos únicos e de expressões singulares somente na relação com outros se completam. Nos exercícios de criação coletiva, em rodas de conversa e em liturgias (no sentido de atividades feitas por uma comunidade de destino), muito praticados nesses espaços de educação não formal; memórias, valores, tradições, identidades culturais, temas do universo de interesse do grupo ritualizam acordos de convivência, confiança e sentidos de pertencimento. É nesse ponto que a função da arte se revela grandiosa, potencializando a vocação humana de ter liberdade, autoria e soberania nas escolhas e nas expressões. Nascemos para ser livres e correspondidos.

Finalmente, como terceiro ponto, destacaria o grande acervo de diversos conhecimentos e metodologias criadas, a partir de uma prática do dia a dia, acompanhada nas minúcias e delicadezas dos gestos, das expressões, das falas, das histórias de vida desses meninos e meninas, participantes dessas iniciativas.

São entrelaços amplos e complexos que, como um caleidoscópio, podem formar imagens múltiplas e multicoloridas, únicas, que não se repetem, configurando maneiras próprias e singulares de produção de práticas educativas. Equipes multidisciplinares e abordagens transdisciplinares temperam as metodologias, que se flexibilizam na estruturação de seus conteúdos, na medida em que novos conhecimentos e desafios são lançados.
Há quem julgue que essa característica signifique falta de clareza de objetivos, foco e sistematização das práticas, mas não é verdade. Sem dúvida, a qualidade empírica é um dos maiores valores dessas iniciativas, mas o corpo teórico que fundamenta suas práticas inspira estudos e pesquisas por parte do mundo acadêmico. Talvez o que possamos pensar é que felizmente a arte nos aponta caminhos e não existe uma única forma de dizer o que esses grupos sabem fazer e de avaliar o que querem saber. Mas tenho clareza de que são práticas que têm na arte sua poíesis (3), na educação seus caminhos formativos e na cultura a força política de transformação social.

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Denise Mendonça é arte-educadora, musicoterapeuta e compositora. Dirige espetáculos musicais e preside o Instituto de Arte Tear, do qual é também sócia-fundadora.
No artigo foi utilizada a grafia arte/educação sugerida pela educadora Ana Mae Barbosa, principal teórica brasileira sobre o tema. “Quando comecei a estudar, o termo arte educação era escrito com as duas palavras separadas. Nos anos 1970 comecei a escrever com hífen, arte-educação, porque defendia uma relação dialética e um sentido de pertencimento entre a arte e a educação. Nos anos 1990, depois de ouvir a opinião de um linguista, decidi utilizar a barra, que reforça o significado dialético e de pertencimento, daí arte/educação”. Ana Mae Barbosa.
Referências bibliográficas
1- FERRAZ, Maria Heloisa e Maria F. Resende e Fusari. Metodologia do Ensino de Arte. São Paulo: Cortez, 1993.2- DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel. Rio de Janeiro. 1981.
MOISES, Massaud. Dicionário de Termos Literários: Cultrix, 1997 e OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte: uma introdução histórica. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, [1968?].

3- (*) Poíesis, do grego, significa ação de fazer, criar, construir alguma coisa. Platão, no livro O Banquete, discute a palavra (da qual deriva “poesia, poeta”). “Toda causa”, diz ele, “de uma coisa que passa do não ser para o ser é poíesis, de sorte que as atividades manufatureiras em todos os ramos da indústria são formas de poíesis e todos os artífices e oficiais são poietai (poetas) ”.

FONTE: Expedições: Rumos Educação, Cultura e Arte 2008 – 2010. São paulo: Itaú Cultural 2010. 152p