Loucura em Cena

O Hotel da loucura  não é um protesto , é uma proposta 

Por Patrícia Olivieri

 Ao completar um ano sem casa, experimentando moradias temporárias e portas e corações abertos,  comecei a vivenciar essa história fui conhecer o Hotel e Spa da Loucura, sede da Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC) , que ocupa hoje o terceiro e o quarto andar de um prédio do Hospital Psiquiátrico Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio de Janeiro. E entre as primeiras idas para trabalhar com o Norte Comum às outras sem algum propósito racional dizível agora, minha celebração de um ano frequentando aquele lugar especial aconteceu durante o Ocupa Nise, o IV Congresso da UPAC,que acontece no mês de  setembro.

Não fiquei hospedada no Hotel, como era possível – houve inscrição antes e gente do Brasil todo e do mundo apareceu para viver essa semana revolucionária. Havia a possibilidade de dormir nas baias, mas não me organizei para tal, e me arrependo um tanto disso.

Ocupa nise na Cinelância

Cheguei na hora da abertura. Ao começar a adentrar o prédio em que o Hotel fica, a música e as vozes cantarolantes que lá da entrada eu ouvia de longe ficaram mais vivas. De repente, muita gente colorida, feliz, presente, fantasiada apareceu descendo as escadas avançando para o pátio. Não pensei duas vezes, me juntei a eles e seguimos em cortejo até um pequeno anfiteatro na área externa do próprio Hospital. Estavam também Amir Haddad, Vitor Pordeus,Heloisa Buarque de Hollanda, Francisco Gregório Filho (preciso abrir esses parênteses para exaltar a beleza e a profundidade com que o Gregório declamou Rosas Silvestres, de Clarice Lispector) e algumas centenas de pessoas para a abertura oficial do Ocupa Nise. Muita música, momentos catárticos, e falas sobre arte pública e saúde pública, principalmente do Amir, foram trazidas. Dancei, cantei, ri, refleti, me entreguei com os internos, os demais visitantes, os internos temporários, todos nós loucos, todos nós sãos. Todos nós, sem nenhum desses rótulos.

Em cena, Reginaldo, cliente do Hotel da Loucura e ator da compania Dyonises

No dia seguinte de manhã eu estava lá de novo. Dois dias depois aconteceu o Sarau Tropicaos lá, e participei com a Ong Reiki sem Fronteiras, onde eu e mais sete voluntários passamos rápidas e ininterruptas três horas oferecendo Reiki para quem quisesse chegar. E como chegou gente! Foi lindo. A sexta-feira foi dia de ocupar espaço público. A Cinelândia ficou lotada. E Amir Haddad, magnífico que estava, trouxe algumas vezes “Isso não é um protesto, é uma proposta”. Eu dançava, rodopiava, e me transcendi tanto que caí e ralei meus bons joelhos, vivendo o ápice da catarse! E a minha participação no Ocupa Nise encerrou ali, não consegui ir nos dois últimos dias (e não foi por conta dos joelhos, que fique claro!).

 

Como senti que vivi superficialmente o evento, convidei a Nina Rodrigues, que esteve no Ocupa Nise durante todo o tempo, dormindo e acordando ali, para escrever esse texto comigo. Não sabia exatamente como escrevê-lo juntas, e acho que continuo sem saber. Ao ler o que ela me enviou me arrepiei da cabeça aos pés, do início ao fim, e tudo o que consigo fazer é trazer o relato dela na íntegra.

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Com vocês, Nina Rodrigues, atriz do Teatro Dyonises, buscadora, encontradora, interna por uma semana no Hotel da Loucura, durante o Ocupa Nise:

Raios do sol e raios da lua entrando paredes adentro – Ocupa Nise 2014

Sentada em um lugar que deveria ser um jardim, mas não é, tomando meu “banho de sol do dia”. Internada em um hospício por vontade própria, há sete dias, às vezes sinto a necessidade de sair das paredes e vir para fora ver o céu, sentir o sol e estar com as árvores. Paredes frias lá dentro, que, segundo uma arquiteta, foram feitas para deixar o vento entrar, mas nunca o sol. O que será daqueles que não podem sair das paredes e grades e se encontram enclausurados, presos e enquadrados por falta de opção? O hospício pira qualquer um.

Conheci Vitor Pordeus em um encontro sobre Educação com o gênio José Pacheco em fevereiro deste ano, e, desde o 1º momento, fiquei impressionada com seu jeito espontâneo, cheio de coragem e presença. Vitor, inspirado pelo trabalho da Nise da Silveira, não apenas segue seus passos, como avança e muito, dando continuidade ao trabalho de humanidade na Psiquiatria, caminhando e quebrando paredes. Vitor Pordeus é médico-ator e diz que o Teatro é a vacina contra a loucura. Vitor tem experiência e embasamento que certificam e lhe permitem bem saber do que está falando. Vejo a clara importância do seu conhecimento científico e seu diploma de médico para validar suas práticas e palavras. Eu, rotulada pela sociedade como “estudante de Psicologia”, agora percebo, de acordo com o contexto em que vivemos, a importância de um “certificado de saber”.

Quantos artistas, quantos gênios, quantos poetas, quantos curandeiros, quantos loucos gritaram e jorraram palavras em vão por não obterem o papel que lhes validam a fala? Quantos por justamente dizerem coisas similares foram condenados a prisões psiquiátricas?

É realmente confortante ver um time de pessoas que possuem certificados que, ao invés de repetir o convencional que não funciona, cocriam, caminhando juntas, revolucionando, garantindo a fala dos que geralmente não tem escuta e praticando o óbvio que a maioria teima em não ver. São os quebradores de paredes. E o Hotel da Loucura é a sede de encontro dessas pessoas. Lá as paredes de antigas enfermarias são ocupadas por artistas-curandeiros e aquecidas por tecidos, cores, poesias, pensamentos, graffitis… E entre elas: abraços, sorrisos, olho no olho, dança, Teatro… Arte e afeto.

Ha dois meses frequento o Hotel da Loucura principalmente como atriz do Teatro de DyoNises e venho me encantando cada vez mais com esse espaço de cocriação e afeto. O que Vitor e todos os outros que colaboram trabalhando juntos realizam no Hotel é revolucionário e é de importância global. Afinal, não se trata somente de um trabalho de Arte em Saúde Mental, mas também de uma universidade livre, a UPAC – Universidade Popular de Arte e Ciência – onde todos podem ter acesso e construir conhecimento juntos a partir de estudos e vivências. É a experiência que constrói e na UPAC isso acontece de forma circular e de dentro pra fora. Sem professores detentores do saber, sem salas de aula. Na UPAC todo ser humano é ator e todos têm autonomia e capacidade de criação. Lá, mitos são desmistificados, o que se prioriza é a intuição e a criatividade, e o tratamento e a cura se dão na relação, no coletivo, e a Arte é o medicamento.

Ocupa Nise – Reginaldo. Foto: Eduardo Rocha

Psiquiatras, médicos, psicólogos, arteterapeutas, terapeutas ocupacionais, educadores, atores, palhaços, cantores, músicos, poetas, xamãs, curandeiros… O que importa mesmo é que todos estavam ali juntos para uma semana de trocas, diálogos, vivências e muita celebração. As experiências foram muitas: conhecer pessoas novas com diferentes histórias e andanças na esfera da transformação social, pessoas com histórias de passagens em prisões psiquiátricas, pessoas que trabalham e lutam diariamente a favor da arte e da saúde pública, a favor da vida. Houve palestras de muito diálogo com Amir Haddad, rodas de diálogos e trocas, roda de conversa com José Pacheco, apresentações artísticas variadas de grupos de Arte pública de todo o Brasil, rituais de cura comVera Dantas, fortes e lindas canções e performances de Edu Viola, estreia do maravilhoso filme “Hotel da Loucura – Gênese”, de Mariana Campose Raquel Beatriz, no Cinema Nosso, na Lapa, exibição do curta “Stultifera Navis”, de Dudu Mafra, exposições de artes plásticas, de fotografia, inauguração do novo andar do Hotel, com obras de artistas como Carlos Bobi, Ema, Rafael Se7, Tarm, Anonimundo, Naviu (RJ), L7M  e Walter Nomura (SP), Acidum (CE), entre muitos outros grandes nomes da cena da arte urbana nacional, e festa, muita festa!  

Ocupa Nise: Atividade no Hotel da Loucura. Foto: Eduardo RochaEncerramento do Ocupa Nise com o educador José Pacheco. Foto: Eduardo Rocha

É de extrema importância estar no Hotel da Loucura vivendo toda sua intensidade e se deixando tocar por sua onda de amor, tendo consciência de que no andar acima a velha Psiquiatria ainda se faz presente prendendo, medicalizando prioritariamente e privando os seres de se expressar e se afetar. “Afete-se!”, manifestavam Vitor Nina e Bruno Passos médicos-artistas de Belém do Pará.

Por que banhos gelados? Por que tantas grades e jaulas humanas? Por que comidas sem gosto? Por que tanta falta de afeto, tanto cinza, tanto verde-hospital? Por que tanto remédio? “É melhor cantar do que surtar! Leia a bula da tarja preta!”. Nos arredores do Hotel da Loucura ainda faltam cores, flores, árvores… E começam a desabar prédios…

“Saúde não se vende, loucura não se prende, quem tá doente é o sistema cultural!”, é o trecho de um dos hinos cantados no Hotel da Loucura. Nise da Silveira comprovou e existem documentos para verificação da eficácia da Arte e do afeto no tratamento psíquico. Medicação, cigarros, café e televisão têm o efeito reverso.

Se os manicômios enlouquecem, se as escolas não educam, se os médicos e os hospitais não cuidam e não atuam na raiz das doenças, mas só tamponam os sintomas; se as prisões não reabilitam, se os artistas não revelam, mas se vendem e vendem produtos maléficos; se os remédios não curam, mas sim agravam as doenças e ainda causam outras; se os terapeutas normatizam o indivíduo; se os gurus e as religiões não unem, não dão autonomia, mas sim causam dependências e alienações… Para quê continuar? Para quê repetir se podemos criar? Por que compactuar se podemos transformar? O papel e a atuação de cada um têm igual importância.

A instituição, a burocracia, a ditadura, tudo aquilo que não serve… está dentro de nós. E o trabalho é árduo e de todo dia.

Após uma semana internada no Hotel e Spa da Loucura, recebi alta e vim para casa. Uma semana que pareceu um mês de tanto aprendizado e vivências intensas que pude ter o prazer de experienciar. Que maravilha acompanhar e viver junto a revolução do afeto, revolução do amor! Essa que grita pra nascer e que nasce na melodia do silêncio e transforma a passos de dança, dando movimento ao concreto, dando cor ao cinza, dando razão à intuição e dando vida à Terra. É Engenho de Dentro pra fora!

Nina Rodrigues, Lua Cheia de sete de setembro.

Fonte: Ser Hurbano

Para ver mais fotos e relatos:

Maria Betania Bulhões
Caetano Dable
Hotel e Spa da Loucura
Spa Sensorial no Hotel da Loucura