Um Encontro de poesia, música e cultura da infância

Registro documental, com matérias de jornais e fotos, rende homenagem à memória de Maria Mazzetti, cujos poemas, musicados por Denise Mendonça na década de 1970, deram origem ao disco infanto-juvenil OLÁ, que comemora 35 anos.

O Encontro

Maria me conta
me traz pra esta dança
me mostra teu mundo
teu mundo de contas
o faz de conta
se torna criança
um dia feliz.

Vem, vem Maria, vem
vem brincar com a gente
entra nesta nossa roda
toda feita de magia
conta tuas histórias
teus segredos, fantasias
vem ficar com a gente
ser pra gente sempre

Maria!

(poema de Denise Mendonça dedica a Maria Mazzetti)

O texto e a entrevista que publicamos a seguir fazem parte do livro A História de Maria Mazzetti, de Domingo Gonzalez Cruz – publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa em 1994 – que recolheu depoimentos e pesquisou dados bibliográficos sobre a vida e obra da escritora. 

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Por  Domingo Gonzalez Cruz

A casa, no meio do tumulto urbano, no bairro do Maracanã (hoje estamos na Rua Pereira Nunes, na Tijuca) silenciosa e antiga, mesmo que não fosse silenciosa. Mas as casas antigas retêm silêncios desconhecidos a ouvidos nus. Resguardam-se para que o homem tenha o prazer de senti-las ou não, por intermédio da sensibilidade no decorrer da existência.

O silêncio que percebo, no caso, refere-se ao motivo mais concreto possível, em princípio. As portas e as janelas estão fechadas. A casa parece abandonada? Não. É uma moldura do passado que se interliga com o presente. Nesta casa funciona o Tear. Depois que me foi dada a oportunidade de conhecer sua intimidade, constato que existe vida fervendo lá dentro. Essa constatação só ocorre de acordo com o morador da casa. Posso concluir que não há casa mais disponível à exploração alheia, e mais fechada em seus segredos ou encantos, do que aquela onde funciona uma escolinha de arte. Pertence às crianças, é a morada do ser, porque elas podem usufruir o espaço físico, o afetivo e descobrir a íntima vontade de viver.

É na memória que o homem adulto recorda o menino e sua casa, dando asas à curiosidade, que reflete a recriação do mundo vivido com total intensidade emocional. Li, muitos anos atrás, um livro que não esqueço, demonstrando, como diria Ligia Bojunga Nunes, os indícios de um velho caso de amor literário e sensitivo. Trata-se do O menino e o Palacete, de Thiers Martins Moreira. Nenhum livro é mais diferente do que esse, no sentido de revelar que “a casa velha é mais propícia para o ato poético e o apartamento e a casa nova muito mais áridos para a imaginação criativa do poeta. Isto porque o poeta vai mais além e descobre que o homem não se preocupou apenas em fazer sua casa. Ele também faz as casas das coisas: as gavetas, os cofres e os armários. Há toda uma estética do desconhecido quando se trata da casa das coisas”. *1 E a criança sabe curtir o desconhecido das coisas, tornando intemporal seu trajeto na infância.

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A outra pessoa deste livro é o Menino que eu fui. Poderia, pois, dizer: Eu e o Palacete. Mas esta fórmula, ainda que historicamente mais exata, seria hoje psicologicamente falsa. O que interessará aos leitores, pelo menos aos cinco leitores que Brás Cubas aceitava que pudessem ler suas memórias, é a alma de um Menino que nada tem a ver com o homem que dele se formou. Nem a casa existe aqui senão em função do Menino que conviveu com ela e com quem manteve diálogo, cujos fragmentos agora revelaria. Sua sensibilidade e os reflexos em seu olhar são mesmo as fontes de que preciso para transmitir, em pureza, as imagens que ela deixou. *2

Assim, recolho imagens nesta casa antiga na Rua Artur Menezes, no Maracanã (hoje na Rua Pereira Nunes, na Tijuca), refletindo como devem estar impregnadas de prazer e alegria, as crianças que aqui frequentam sua intimidade. Ainda Thiers Martins Moreira:

A arquitetura que surge na revelação, o sentimento de amizade que se forma, a força da personalidade do Palacete, tudo o que afinal posso chamar sua natureza e sua alma, talvez só tenha atingido a sensibilidade do Menino graças a quatro fatos, que destaco sob o título de Mistério e Fantasia, e que contribuíram decisivamente para criar atmosfera mágica dentro da qual viveu. Os valores espirituais de comunicação da casa não se imporiam tão fácil e rapidamente se esses fatos, ainda que reais, não levassem o Menino para aqueles mundos onde a realidade se dilui. Sobretudo os episódios do cofre enterrado e da alma do Barão tiveram esse papel.

O velho palacete, quando Menino foi morar com seus pais nele, tornara-se um hotel. Sendo filho de hoteleiros, o Menino trabalhava e ao mesmo tempo brincava dentro da residência envelhecida. Enquanto circulava a serviço dentro da casa comercial dirigida por seus pais, perambulava seus olhos pelo velho palacete, descobrindo um diálogo interior que só existia entre os dois, na brincadeira, no encanto das formas e mistérios do que deixará de existir, mas ali estava renascendo na fantasia de uma criança.

Terá esta casa do Maracanã (hoje na Pereira Nunes, Tijuca) mistérios semelhantes ou diferenciados com relação aos encantos que um dia alimentaram a imaginação e o ludismo daquele menino de Campos? Talvez, “nos ruídos e sons, alguns tão íntimos como o sopro de uma respiração” ou nos “sons de ferro sob a madeira, que partiam das trancas das janelas e das portas”; quem sabe se isso não ocorreria no “som dos galhos da mangueira roçando nas calhas de cobre e nas telhas, parecendo quebrar-se, ameaçando quebrar”.

Mas será que esta casa no bairro do Maracanã existiu um dia qualquer tipo de árvore no quintal interno que agora observo, motivando brincadeiras sensoriais para a imaginação infantil?

As crianças adoram visitar, por exemplo, o Museu da Fundação Casa de Rui Barbosa, mais de uma vez. E isso com certa frequência quando estão entre os 8 e 10 anos de idade. Não se cansam de sugerir essa possibilidade aos adultos. Perdem-se lá por dentro, mesmo estando acompanhadas pelos guias. Flutuam na claraboia no alto da escada do terceiro andar, que se torna um caleidoscópio natural, no momento em que as crianças piscam os olhos com grande insistência e rapidez.

Numa sala pequena, observo a alegria das crianças no quintal interno da casa. Denise Mendonça, que dez anos atrás fundou o Tear (em 1980) com alguns amigos, após diversos papos com Augusto Rodrigues, Noêmia Varela, entre outros arte-educadores, fala pausadamente sobre Maria Mazzetti. As reflexões abrem um caminho para uma emoção contida, mas que percebo sincera:

 “Eu cursava o 2º ano normal e tomei conhecimento de alguns projetos efetuados por Maria Mazzetti da Divisão, através de minha mãe que trabalhava no Setor de Alfabetização. Comecei a me interessar muito pelo tipo de trabalho que ela estava dessenvolvendo, através do texto integrado a outras linguagens como a expressão corporal, o movimento, o teatro e as artes plásticas’.

Nessa época, Denise começava a estagiar. Aventurou-se a ser a primeira a dar a tão amedrontada aula. O cereio que atinge quem inaugura uma nova experiência pairava no ar. Mas ela tomou essa iniciativa, motivada por uma paixão intensa pela educação. Coisa antiga, desde o tempo de menina. Pegaria a 4ª série e teria que desenvolver um trabalho em cima de um texto com as crianças. Era o ano de 1973. Maria Mazzetti escrevia a coluna Olá. E ela, antes ou durante a publicação, gostava de mostrar para as pessoas o que escrevia, e trabalhava esses textos em comum acordo com a equipe.

Assim chegaram às mãos de Denise, através de sua mãe, algumas dessas poesias de Mazzetti. O momento certo para começar uma fascinante experiência:

“Fiquei simplesmente apaixonada. Percebi que havia toda uma forma espontânea, que retratava, realmente, a emoção da criança, algo de forte empatia. descobri como daria essa minha primeira aula, meu primeiro desafio: seria uma aula integrada a partir de uma poesia de Maria Mazzetti. E a escolhida foi “O que eu descubro”. E o que foi que Denise descobriu?”

Pelo quintal, no jardim,
parece tudo quietinho…
não se ouve um barulhinho…
Mas embaixo das plantinhas,
um milhão de formiguinhas…
Entre as flores, entre as telhas,

passeiam muitas abelhas.

De um buraquinho redondo
vem saindo um maribondo.
No troco, igual a uma lixa,

escorrega a lagartixa.
E debaixo de uma pedra,

bem debaixo, escondidinha,
eu descubro a joaninha!!!

“Essa poesia fala sobre a descoberta das pequenas coisas existentes num quintal, num jardim, revelando a imensa amplitude da percepção da crinaça, que é capaz de capturar a essência e detalhe da vida simplesmente. Possibilidade esta, que a gente, quando adulto, vai perdendo caso não resgate esse referencial da infância.”

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Envolvida pelo texto, Denise resolveu dar uma aula voltada para os sons, explorando o lado melódico e de movimento nele existente. Estava com 16 anos de idade na ocasião e gostava de compor. Resolveu musicar o texto:

 ” Tudo aconteceu de uma forma natural e despretensiosa. Eu queria trabalhar a percepção visual e sonora. A música veio apenas complementar essa intenção.”

Gostou da experiência. Surgiu uma identidade muito grande. Começou a pegar outros textos de Mazzetti e a musicá-los. Não havia nenhum propósito de divulgação. Na verdade, ocorria aos poucos um exercício gradativo de sentir o texto, trabalhar a música, exercendo a criatividade no seu lado mais prazeroso. A magia aconteceu. Sentia-se envolvida. Encontrara, sem querer, uma feiticeira. Resolveu conhecê-la, queria apresentar o que tinha feito. Homenageá-la. Juntou um grupo de amigas, preparou quase que um pequeno show e foi apresentá-lo no Setor de Teatro Infantil:

“Reuni algumas amigas do Instituto de Educação e fomos cantar para Mazzetti. Nós demos o nome do Grupo Olá em sua homenagem. E foi uma coisa muito bonita. Minha intenção era só dizer para ela, através da música, o quanto eu já admirava o seu trabalho e que aquele encontro tinha sido muito importante para minha vida. E minha maior surpresa e emoção foi ter, diante de Mazzetti-Aparecida-da-luz-do-dia-sentido seu abraço, sua força e sua paixão sobre a arte, a educação e a vida. Acho que naquele dia fui batizada. Foi no dia 20 de agosto de 1973. Naquele momento, nasceria oficialmente nossa parceria: Maria Mazzetti escrevendo. Anna Belli desenhando e eu musicando.”

“O fato é que Mazzetti sempre me impressionou ” explica Denise, num momento longo de reflexão “pelo seu dinamismo e por suas ideias sobre a arte e educação“.

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Primeira Formação do Olá! Da esquerda para a direita estão Elizabeth caldas, Ângela Bispo , Maria Angélica Alves, Patricia Lima, Denise Mendonça, Elizabeth Cerqueira, e Regina Caldas

“Depois daquele encontro, Maria me estimulou muitíssimo a continuar, mandando-me textos, inclusive poemas e poesias ainda não publicados. Me levou ao JB para entrevistas e contato, dando força para que eu gravasse um disco. Naquela época, ela me levou à Sonoviso, que, embora não fosse gravadora do porte que tem hoje, realizava pequenos projetos ligados à elaboração de materiais audiovisual. Mas não aconteceu. Acho que ainda não era tempo. Dentro de mim eu não tinha forte esse desejo. Não era gravar um disco – era viver intessamente, adolescentemente uma experiência em educação através da arte espelhada naquela grande pessoa e educadora. Foi, sem dúvida, um grande privilégio ter conhecido Maria Mazzetti, ter sido sua parceira de músicas e educação, o que foi essencial para o começo de minha vida profissional.”

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Formação que gravou o álbum Olá! . Da esquerda pra direita estão Tânia Vasconcelos, Denise Mendonça, Beatriz Vaz, Marco Antônio, Teca Barcellos, Joaquim de Paula, Julia , Pedro , Mario Vitor Monteiro

“Ainda que por pouco tempo (Mazzetti morreria 6 meses depois), sem ter muitas chances para trocar ideias ou fazer perguntas de um discípulo a um mestre, guardei como se guarda um tesouro ou um segredo, tudo o que vi, ouvi e senti dos poucos momentos que estive com ela. Mazzetti tinha nos olhos uma luz que brilhava e a fazia menina cada vez que ela, junto com um grupo, falava de poesia, de bonecos, de teatro ou dos caminhos da educação. Sua capacidade de envolver as pessoas, de que idade fosse, era incrível. Sua poesia não tinha leitor exclusivo – era para ser lida e vivida por todo mundo. Um dia assisti a um trabalho que ela desenvolveu com um grupo de idosos. Foi contando uma história devagarinho, levando as pessoas a se transformarem e a fazerem parte daquela história… que a gente de fora já não sabia mais se eram velhos feito crianças ou se eram crianças brincando de ser velhos.

Com Maria aprendi tantas coisas… uma delas a toda hora estou resguardando na minha vida e constitui uma das principais razões de eu ter criado o Tear: o ato mágico da descoberta e da transformação. Você como menor de suas próprias ideias, através de linguagem poética, sonora, plástica, enfim, para ter acesso a seu próprio universo expressivo e SER  único e SER inteiro – a grande possibilidade que cada um de nós tem de ser, de fato, um MAGO.”

Essa forma de conduzir o pensamento e a vida está muito presente em sua poesia ao lidar com o non sense, o imprevisível e o imaginário de maneira extraordinária. E lidando com o não-convencional, com a informalidade, amplia-se o sentido, a percepção, a leitura em relação a qualquer coisa essa é a grande magia.”

O mais incrível foi eu ter encontrado fora da escola, fora de um curso de formação de professores, uma pessoa que em tão pouco tempo me lançou a questões tão importantes e imprescindíveis sobre o processo de educação; sobre criatividade, arte e informalidade; sobre efetividade e sensibilidade e, sobretudo, sobre a potencialidade do Homem, enquanto criatura e criador.

No início de 1974, a vida de Maria Mazzetti parou no tempo e no espaço. Ficaram as histórias, as peças e o carinho que deixou nas pessoas que conheceu no decorrer da existência.

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Denise formou-se e viajou com a família para residir no exterior. Voltou três anos depois. Estudou musicoterapia. Retornou às músias preparadas para as poesias de Maria Mazzetti nos anos setenta. Era uma forma de ficar perto. deixar-se estar. Juntou um grupo, trabalharam o travamento vocal, o instrumental, conseguiram dinheiro.

No decorrer de dois anos produziram um disco independente. Foram 6 anos de trabalho, desde que ela conhecera Maria Mazzetti, até o dia da gravação.

Em 1980 saiu o disco, pela necessidade de divulgar e registrar um trabalho que já se difundia espontaneamente. Fundou o Tear, com outro grupo de amigos. Iniciavam o amadurecimento de uma experiência no campo da arte-educação, que acabou formando uma equipe em ação dentro da comunidade infantil carioca.

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Citações

  1. Lima, Batista de A. Poética do espaço ou… a Geometria do Devaneio. Arsenal da Cultura, Fortaleza, (2) 1981.
  2. Moreira, Thiers Martins. O Menino. In ___. O Menino e o Palacete. Rio de Janeiro, Livr. São José, 1968. p.21, p. 47, p.63-64

Fonte:
CRUZ, Domingo Gonzales. A História de Maria Mazetti. Fundação Casa de Rui Barbosa. Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, 1994. p 43- 50.