Performance

Uma proposta alternativa para o Ensino da Arte

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Por Davi Giordano

O presente texto fala sobre como a arte da performance, articulada com princípios das intervenções urbanas e das ações de rua, pode contribuir como experiência artística e pedagógica para o Ensino da Arte em contextos formais e não formais. Para isso, incorporo na escrita algumas das minhas vivências como professor-artista, oficineiro e performer em trabalhos realizados em municípios do interior do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Ao longo de dois anos, venho realizando intervenções artísticas e performáticas em contextos pedagógicos com o objetivo de estimular o contato de estudantes com princípios da arte contemporânea. Para o desenvolvimento da minha prática, parti de algumas questões fundamentais que nortearam os caminhos do meu trabalho: de que forma despertar o interesse de crianças, adolescentes e jovens pelo fazer artístico? Como transformar locais ociosos em espaços criativos e potencializados de arte? Quais as possibilidades de reinventar o Ensino da Arte como potência criativa e geradora de sensibilidade estética em relação ao nosso olhar diante do cotidiano? Como relacionar a prática artística, a pedagogia e os projetos sociais? De que maneira pensar o espaço da rua como local de aprendizado e produção artística?

Pensando nessas questões, tomei como inspiração duas referências fundamentais que proporcionaram densidade para os objetivos conceituais do meu projeto. A primeira referência é o conceito de Ócio Criativo, proposto pelo sociólogo italiano Domenico De Masi em livro de título homônimo; o segundo é o conceito de Arte Sociamente Engajada, problematizado pelo curador e arte-educador mexicano Pablo Helguera, em seu livro Education for Socially Engaged Art.

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Em relação ao primeiro conceito, De Masi alega que, em nossa sociedade pós-industrial, a criatividade se coloca no centro da produção de energia e de investimento no mundo do trabalho. Para o autor, vivemos na era da sociedade criativa e estética, em que os trabalhos criativos criam espaços fortes e atrativos no atual mercado de trabalho. Contudo, este último apresenta como risco a burocracia, que pode tornar o trabalho “repetitivo, padronizado, estandardizado” e, consequentemente, impossibilitado de criatividade (DE MASI, 2000, p.83). Por esta razão, necessitamos sempre romper os modismos e valorizar as escolhas que cultivam a subjetividade, a fim de que prevaleça a ética do desejo de se distinguir e não de se homogeneizar. Em diagnóstico feito sobre a sociedade pós-moderna, o sociólogo identifica que há uma rígida diferenciação entre o trabalho, o estudo e o entretenimento, o que provoca que o homem seja cada vez menos criativo em sua dimensão lúdica. Para inverter tal situação, o autor cria o conceito de ócio criativo como um meio para se pensar uma articulação plena entre o trabalho e a vida, permitindo que entre eles se estabeleça uma dimensão cognoscitiva e lúdica. Para isso, em sua proposta sociológico-filosófica, o autor sugere uma maior aproximação entre o trabalho, o estudo e o jogo, pois nesse processo se identifica uma “plenitude da atividade humana” (DE MASI, 200, p.153) na qual não há uma divisão rígida entre uma instância e a outra. Isso seria aquilo que o autor chama de ócio criativo. A proposta de ócio criativo busca valorizar a criatividade como uma atividade intelectual merecedora de valor no mercado de trabalho. O segundo aspecto examinado pelo autor é a subjetividade, sendo aquilo que permite a variedade, a vontade e o desejo “de se sentir diferente dos outros” (ibidem, p.155). Domenico de Masi pontua que o ócio é necessário à produção de ideias. Por isso ele atribui ao tempo livre a fonte da matéria criativa (ibidem, p.242). Desta forma, ele acredita ser necessária uma educação para o ócio, pois só assim poderemos considerá-lo positivo e dar-lhe a devida atenção. O conceito proposto pelo autor provoca pensar que, para uma atividade artística, devemos seguir “regras completamente diferentes” (DE MASI, 2000, p.241). É possível pensar criativamente a ideia de ócio como uma maneira de nos estimular a nos tornar sujeitos criativos, intuitivos e sensíveis, capazes de coincidir as atividades de estudo, de trabalho e de tempo livre, sem que haja fronteiras rigidamente demarcadas entre uma instância e outra. O sujeito criativo é aquele que possui a habilidade de transmutar suas energias e performar a virtualidade dos seus desejos numa potência de criação artística.

Já em relação ao segundo conceito, no livro Education for Socially Engaged Art, o autor Pablo Helguera (2011) propõe o conceito de arte socialmente engajada para entrelaçar os campos da pedagogia, do trabalho artístico e da dimensão social. De acordo com o autor, este conceito possui o objetivo de dissolver as fronteiras entre uma instância e outra num terreno híbrido. A sua proposta busca estimular a criação artística e coletiva dentro de comunidades, provocando um projeto estético e político em seu caráter performativo.

Com base nos conceitos de Ócio Criativo e Arte Socialmente Engajada, eu criei o projeto Arte Ociosa como forma de investigar a relação entre a Arte da Performance e o Ensino da Arte, pensada como um canal potencializador dentro de contextos de instituições de ensino formais e não formais com crianças, adolescentes e jovens de municípios do interior do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Antes de abordar algumas experimentações realizadas, creio ser necessário fazer uma breve abordagem sobre a Arte da Performance. Em sua origem nos anos setenta, a arte da performance explorou de diversas maneiras os limites entre a arte e a vida, sendo uma das linguagens artísticas que mais se apropriou do investimento do artista sobre si próprio. Nessa linguagem artística, os artistas atuam conscientemente sobre a descoberta pessoal como material e recurso de experimentação e de criação artística. Desde o seu surgimento no início da segunda metade do século XX, a performance sempre foi uma arte de difícil compreensão enquanto gênero artístico, justamente por sua natureza transgressora e provocativa. No livro Performance como linguagem, Renato Cohen (2009, p.27-30) evidencia algumas questões que nos ajudam a compreender características comuns em relação às ações e experimentações específicas dessa arte. Dentre os pontos levantados pelo autor, posso ressaltar de forma sintética: a intenção de romper com as convenções, representações, formas e estéticas; uma arte que busca escapar de rótulos e definições; uma arte que possui diretamente uma função de relação com o espaço e o tempo, ou seja, algo que está acontecendo no aqui e agora; um conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais, icônicos), imagéticos ou mesmo indiciais; a arte da presença; a implicação de duas formas cênicas básicas: a primeira seria a forma estética que necessita da presença do espectador, já a segunda seria a forma ritual na qual o público se transforma em participante direto e possui um posicionamento ativo e crítico em relação ao acontecimento artístico; uma hibridez de linguagem; o artista sendo sujeito, objeto e atuante de sua arte. Por último, o autor faz uma classificação topológica ao dizer que a arte da performance se colocaria no limite entre as artes plásticas e as artes cênicas, configurando-se efetivamente como uma linguagem híbrida “que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade” (COHEN, 2009, p.30).

Para essa reflexão trago algumas experimentações que ajudarão na compreensão das ideias abordadas anteriormente e que me auxiliaram na realização do projeto Arte Ociosa, que tem o objetivo de pensar a Arte da Performance como uma proposta alternativa para o Ensino da Arte.

A primeira experimentação que trago se intitula “Troco desenho por um abraço” e foi realizada com o grupo Ateliê da Infância – Poiésis, Corpo e Imagem, com crianças do município de Casimiro de Abreu. Inicialmente, as crianças elaboraram uma série de desenhos no meio de uma praça pública. Posteriormente, saímos caminhando pela cidade carregando o cartaz com o título da performance. Pelas ruas, as crianças ofertavam os seus desenhos criados em troca de abraços, modificando assim valores mercantis e utilitários por trocas sensíveis e afetivas.

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Numa segunda experiência com pré-adolescentes do mesmo município, criamos uma ação que possui uma linhagem de performance de conversação. O nome da intervenção se chama “Picnic Poesia”. Nela, os performers preparam um piquenique no meio da principal praça da cidade. Eles colocam um grande tapete sobre o chão com comidas e livros de poesia e, assim, convidam as pessoas para se sentarem e dialogarem através de trechos poéticos.

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Numa terceira experimentação, com o Grupo de Estudos e Investigação sobre Processos de Criação Performáticos e Cênicos, composto por adolescentes e jovens, concebemos e realizamos a performance “Estátuas Poéticas” em dois contextos distintos. A performance consistiu na criação de cinco poses distintas criadas individualmente por cada performer. Dentro de um tempo total de dez minutos, os performers transitavam de uma pose para outra a cada dois minutos, quando eu então sinalizava a mudança através do soar de um sino. Durante os dez minutos, eles repetiam ciclicamente um trecho poético que foi escolhido de forma diferenciada por cada um. No primeiro contexto, o grupo realizou o trabalho dentro do Sexto Epocabreu, evento de música e poesia realizado no distrito de Barra de São João. Como nessa cidade morou o grande poeta Casimiro de Abreu, os trechos poéticos foram escolhidos a partir de algumas de suas obras. No segundo contexto, o grupo realizou o mesmo trabalho no evento [link id=”5212″ text=”Um Rio de Histórias – Festa de arte e cultura”], que celebrava os trinta e cinco anos do Instituto de Arte TEAR. Devido à temática específica do evento, dessa vez, os trechos poéticos foram selecionados a partir de diversas poesias de poetas cariocas conhecidos.

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Como última experimentação, comento a performance Caminhada Vendada (primeira fotografia), realizada por jovens e adultos do curso de teatro da Casa de Cultura Celina Neves, no município de Bauru do interior de São Paulo. A performance consistiu na caminhada em duplas por ruas da cidade. Para cada dupla, um integrante estava vendado enquanto o outro o guiava através de frases. Foi pedido para que cada um escolhesse uma frase que gostaria de projetar para o mundo. Após um tempo determinado de caminhada, as duplas trocavam os papéis entre aquele que estava vendado e aquele que dizia a frase.

Estas foram apenas algumas das experimentações realizadas. Vale dizer que, em dois anos de realização desse projeto, foram realizadas mais de vinte intervenções e ações de ruas, também analisadas e publicadas em outros artigos. Com a realização desses trabalhos, pude criar uma metodologia específica de trabalho de pedagogia alternativa e experimental que considero como algo inovador para estimular novos contextos de Arte e Pedagogia no Brasil. Através de um cruzamento metodológico de forma teórico-prática entre os conceitos de Ócio Criativo e Arte Socialmente Engajada, desenvolvi este procedimento de trabalho que intitulo Arte ociosa como uma interface criativa para pensar uma relação entre a Arte da Performance e o Ensino de Arte.

Para finalizar, reflito que é fundamental estimular projetos artísticos que possam trazer novas abordagens e criar pedagogias alternativas, incluindo temas do cotidiano numa dimensão de experimentação e investigação que pressupõe o contato direto com questões da arte contemporânea. Penso que as contribuições desenvolvidas dentro do projeto possam servir como estímulo para pensar desvios dos modelos tradicionais e convencionais do Ensino da Arte. Dessa forma, é necessário cada vez mais pensar um movimento estético e político que se sensibilize e se diferencie de modelos hegemônicos, padronizantes e imperativos do mercado. Sendo assim, o nosso papel é refletir sobre como podemos apontar novos caminhos para compreender a arte como um campo de experiência, de encontro e de compartilhamento mútuo de afetos e subjetividades.

Davi é diretor, professor e escritor de teatro e performance. Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO. Atualmente forma parte da equipe de arte/educadores do Instituto de Arte Tear e também trabalha como coaching de atores e profissionais de diversas áreas. Já apresentou seus trabalhos no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos e na França. 
Referências
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2. ed. 2009.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo / entrevista a Maria Serena Palieri. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.GIORDANO, D. F. . A performance como prática pedagógica, intervenção artística e projeto social. In: 24 Seminário Nacional de Arte e Educação, 2014, Montenegro (Rio Grande do Sul). Anais Arte e educação: os desafios do professor de arte no mundo contemporâneo. Montenegro: Ed. da FUNDARTE, 2014. v. 24. p. 396-402.GIORDANO, D. F. . Educação, Arte e Performance: performando o corpo da juventude na cidade.. In: I Seminário de Arte, Educação e Culturas do Espaço Cultural do Colégio Pedro II: Tramas para reencantar o mundo., 2014, Rio de Janeiro. Tramas para reencantar o mundo: Anais do I Seminário de Arte, Educação e Culturas do Espaço Cultural do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Espaço Cultural do Colégio Pedro II, 2014. v. 1. p. 100-110.
HELGUERA, Pablo. Education for socially engaged Art. New York: Jorge Pinto Books, 2011.

Assista também o video regitro da Intervenção  com o grupo da Escola de Teatro da Fundação Cultural Casimiro de Abreu sob a direção de Davi Giordano