Yoga para pessoas nas e das ruas

Entrevista com Andre Andrade Pereira, o idealizador do Café da manhã

 

Por Cris Stevanin (*)

O propósito deste projeto solidário estende um convite a todos para uma experiência ímpar, a empatia e humanização de nossas relações com o próximo!

Entrevistamos Andre Andrade Pereira um dos idealizadores dos projetos “Café da Manhã” e “Meditação e Yoga com Moradores de Rua” suas inspirações nascem dos exemplos de Madre Teresa de Calcutá e gentilmente iniciamos nossas primeiras reflexões com esta mulher de fibra!

“Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de pão ou de amizade… As palavras de amizade e conforto podem ser curtas e sucintas, mas o seu eco é infindável”. Madre Teresa de Calcutá

Acompanhem nossa entrevista realizada com muito carinho!

Os ideais do projeto são amplos e nas palavras de Andre “Vamos precisar de todo mundo”

Entrevista concedida em julho de 2016

Quando começou e o que inspirou o trabalho do “Café da Manhã”?

Nosso trabalho começou em 2005. Tivemos duas inspirações: um grupo aqui do Rio que servia quentinhas à noite e que, ainda hoje, serve uma ceia no Natal, que é o SOS LUZ, e um grupo que em Juiz de Fora oferecia o café da manhã dentro de um centro espírita, o Garcia. O Garcia nos inspirou pela ideia de oferecer o café da manhã, o que era mais fácil, uma energia mais leve, de manhã a pessoa está com mais esperança de um dia que renasce… a noite, muita gente embriagada, tendo enfrentado muitas frustrações do dia… e o SOS LUZ nos ensinou muito do jeito carinhoso de olhar, de abordar, de se fazer um com o irmão… uma verdadeira compaixão, aquela que nasce da empatia, da compreensão de que não somos melhores nem piores que ninguém, somos simplesmente humanos.

E há uma inspiração filosófica?

Posso dizer que há várias personalidades que nos inspiravam no início: Madre Teresa, Francisco de Assis, o nosso Betinho, Mahatma Gandhi, Dom Helder Câmara… nós líamos suas ideias e nos inspirávamos em suas vidas, na forma como encararam a questão da luta social em um mundo tremendamente desigual, mantendo uma busca, uma coerência espiritual.

Madre Teresa de Calcutá por exemplo, foi uma grande inspiração. A partir de uma simplicidade incrível, criou uma das maiores organizações de caridade do mundo. E não é simplesmente uma distribuição de comida… é uma gesto que nasce da profundidade de um chamado do coração, uma coerência interna, e de fé, que se nutria de uma mística, saciar a sede de Jesus, no meio da multidão de famintos: “Tenho sede. Venha, seja a minha luz”, Jesus lhe disse mais de uma vez, em suas visões. Então todo o trabalho dela tem uma inteligência afetiva extraordinária que nasce de uma vivência de amor. É a expansão natural de um amor, que se nutre de uma mística muita forte, e que se desvia das barreiras burocráticas e das estruturas de poder do mundo dos homens, sem odiar ninguém, sem guerrear. Ou seja, ela nos inspira permanentemente a nos lembrar que nossa motivação não é distribuir alimentos… nós estamos criando um novo mundo… é por uma outra civilização que estamos indo para rua… num gesto de amor por toda a humanidade que não deu conta ainda de dar uma vida digna a todos os seus membros.

Como foram os primeiros convites aos moradores e qual foi o local da realização deste “Café da Manhã” especial?

O café era servido andando pelas ruas, abordando individualmente as pessoas, às vezes pequenos grupos de três que estavam debaixo das marquises ainda pela manhã. Era mágico acordar o sujeito e ele se deparar com uma bebida quentinha ali, de forma surpreendente. E com o tempo o pessoal foi conhecendo a nossa rota e já ia para as praças nos esperarem. Gostávamos de fazer uma roda com oração, contar uma história, ter uma ação educativa… isso foi dando um carisma, uma energia de agregar as pessoas em grupos… então fomos ficando em pontos fixos. Sempre em praças, debaixo de árvores, que é o nosso prazer de estar ali diante da natureza. E relembrar as pessoas de olhar a natureza…

Fale-nos da equipe de voluntariado do “Café da Manhã”?

Os voluntários foram chegando através de divulgação que fazíamos em centros espíritas e chegavam também pessoas que passando pela rua simpatizavam pela ação. Depois, amigos dos voluntários iam atrás desse sentir-se bem, dessa possibilidade de viver essa emoção altamente gratificante que é estar junto com o pessoal, levar bom ânimo, saciar a urgência da fome física e emocional.

Conte-nos, por favor, sobre o crescimento do projeto ao longo destes belos 11 anos?

Com o tempo o grupo foi crescendo. Os grupos de três debaixo das marquises, foram se tornando grupos de 20, de 50 pessoas nas praças. Hoje, já são mais de 150 pessoas que vem tomar café com a gente em três dias da semana. E os voluntários também iam chegando e assumindo o compromisso consigo mesmo de estarem ali. Quando o grupo de voluntários estava grande demais abrimos o café em outro dia da semana, em um bairro diferente. Assim, hoje atendemos no Flamengo, em Laranjeiras e na Glória. Creio que somos cerca de 50 voluntários. E não temos uma institucionalidade, nem mesmo uma centralidade de coordenação. Somos um grupo muito espontâneo, que se organiza para distribuir o que trazemos de nossas casas. Tem uma padaria da Ilha do Governador que fornece uma broa de milho na segunda. No mais, fazemos “vaquinha” e compramos tudo. Acho que está na hora de estabelecermos parcerias porque com a expansão do trabalho está ficando difícil nos manter só com essas pequenas doações.

Conte-nos sobre as amizades construídas com o voluntariado do projeto?

O que nos une é a ação. Às vezes os voluntários novos chegam e passam semanas sem nem mesmo saber o nome dos companheiros de trabalho. Isso parece um pouco frio, mas há uma fluidez no trabalho, no momento do servir e estar ali presente, um sentimento de alegria coletiva que contagia e as pessoas sentem-se bem. Quase não fazemos reuniões de equipe. Então creio que temos um grupo muito focado no serviço. É um pessoal tão apaixonado pela ação que, mesmo quando surgem desentendimentos na equipe, é muito raro alguém se afastar do trabalho. Ou seja, há um trabalho interior… cada um ali, vencendo as vozes do ego, ultrapassando queixas pessoais e se dedicando a um amor maior. Isso dá um grande crescimento pessoal para todos. É claro que nos fortalecemos quando há mais vínculo afetivo entre os voluntários e estamos decidindo fazer um encontro mensal, para fortalecer esses laços.

Ao longo destes 11 anos quais foram às histórias mais relevantes para compartilhar conosco nesta entrevista?

Nossa! São muitas histórias… e eu sei de algumas mas cada um terá muitas histórias para contar. Uma que me marca muito, e sempre incentivou a continuidade do trabalho, aconteceu nos primeiros anos. Um rapaz veio tomar café e pediu para falar comigo. E ele disse: “irmão, quero agradecer por esse café. Ontem eu estava com muita fome, com muita fome mesmo. Eu tava com tanta fome que decidi que ia roubar alguém.” Nessa hora nós dois nos emocionamos e ele continuou: “E ia roubar alguém, mas aí eu me lembrei de vocês, desse clima gostoso que tem aqui no café, dessa paz que vocês passam, e desisti de roubar. Aí, logo passou alguém que me ofereceu uma comida. Eu quero agradecer pelo que vocês fazem aqui”.

Então temos a clareza que por mais que pareça uma doação de alimento… é muito mais. A presença… é o mais importante. E o que comunicamos quando estamos presentes, ali, sem julgamento, tem um olhar sabe?… acho difícil ensinar esse olhar… isso tem a ver com a caminhada espiritual de cada um, mas é um olhar de igual para igual, ao mesmo tempo que uma serenidade interior… e é isso que a gente passa de coração para coração no silêncio da ação, no sorriso, no bom humor…

E a gente se surpreende com nossos próprios julgamentos. Uma vez um senhor me pediu dois cafés. Uma para ele e outro para levar para a esposa. Eu respondi: “eu vou levar com o senhor”. Na verdade eu estava desconfiado que ele quisesse dois para ele. Mas ele aceitou. Então caminhamos alguns metros… havia uma área com brinquedos para crianças… e bem ali, debaixo de uma “casinha” de crianças estava a esposa dele… imagina!… com uma criancinha recém nascida nos braços… a criança olhou e sorriu para mim… eu desabei… na minha poética mística… era Jesus… Ele voltou!… acho até que escrevi sobre isso… e não é verdade? Ele se disfarça de tantas formas… mas eu sei que é Ele, especialmente quando ele ajuda a revelar minhas pequenezas…

Conte-nos sobre os moradores, o carinho e amizade com os voluntários ao longo destes 11 anos?

Um dia um dos nossos voluntários sentou-se perto de um grupo onde estavam jogando damas. Ali ele desafiou o rapaz que era tido como o melhor jogador… foi fascinante… ficaram ali muito tempo jogando e enquanto iam jogando iam fazendo amizade… dando risadas… foi muito descontraído… no fim de várias partidas o rapaz ganhou todas… nosso voluntário depois ficou contando essa história ressaltando o valor da inteligência do rapaz, que tinha baixa escolaridade, vivia nas ruas… mas que era inteligentíssimo…. e assim como nesse caso, são muitos os talentos que poderiam ser aproveitados…

Eu acho que a gente não tem ideia do tamanho dos efeitos disso. Na nossa história de vida, as pessoas deixam marcas em nós. São partes do nosso continente afetivo, são referências que dão suporte emocional para darmos conta dos desafios da vida. A especificidade da população de rua é justamente a ruptura afetiva com família, amigos, e toda a sua própria historia. Eles caminham num deserto, seco e cheio de perigos. Então nós surgimos e estamos ali semana após semana. É muito emocionante ouvir relatos de quem saiu da situação de rua e fala que apesar de quase não termos conversado muito e quase não “ficarem para a oração”, que nós fomos muito importantes ali para eles. Ou seja, nos tornamos pessoas significativas nesse momento duro que a pessoa está passando. Vai surgindo uma intimidade com esse encontro.

Agora, salvo raras exceções, é uma amizade que fica ali, na hora do café, ou em encontros furtivos na rua, um sorriso, um reconhecer a “tia do café”, o “tio do café”… porque ainda é uma situação de grande apartheid. São mundos muito distantes. Tanto quanto é distante o mundo das classes sociais… com o complicador de que quem mora na rua está muito sem vínculos… e há um grande medo na construção desses vínculos… então é uma amizade superficial, mas de grande intensidade afetiva (consigo me explicar?). São arroubos de emoção, que aparecem em formas de agradecimento, choros… e são muito sinceros… mas tão logo passa o momento… segue a solidão nossa de cada dia. A imagem que me vem é a de um preso que tem maravilhosos momentos no horário de visita… mas a visita vai embora e o presídio não é nada fácil pra quem fica. E isso me dói… acho que o que fazemos ainda é muito pouco.

Conte-nos um pouco sobre as histórias dos moradores e o quanto estes gestos de cuidado como o “Café da Manhã” lhe apoiaram na jornada, por favor?

Lembro-me de um homem que passou por nós num encontro muito rápido. Ele estava agitado. Pegou o café, e trocamos uma conversa muito breve. Ele falou que o mundo anda muito violento, tudo muito perigoso. Eu olhei para ele e disse… mas a gente vem de uma história muito mais selvagem… ele parou… não sei se pensou na história a que eu estava me referindo ou se na sua história pessoal… então ele se emocionou e falou: “pessoas como o senhor fazem com que a gente não perca a esperança na humanidade. Eu estava perdendo a esperança na humanidade aí encontrei o senhor, fazendo esse gesto bonito…” Ficou um tempo ressaltando a beleza do meu gesto, de manter essa chama acesa… foi muito profético… se emocionou e nos despedimos. Acho que, apesar de pouco, muito pouco, estamos mantendo uma chama acesa que é muito importante. Ainda tem gente boa no mundo… são muitas histórias de pessoas que só encontram brigas e tormentos mentais nos companheiros de rua… e nosso grupo traz um momento de paz, de voltar a acreditar no bem, no amor… Por muitas vezes os companheiros chegam com muita pressão emocional, vivendo “um dia de fúria”, e ali… conosco… conseguem se desarmar. Literalmente. No outro dia um veio, me chamou para o canto e pediu que ficasse com uma faca. Ele desistiu de roubar e queria entregar a faca para mim.

Conte-nos sobre este projeto especial de 11 anos e o que lhe moveu a iniciar as práticas de meditação e yoga com os moradores este ano, por favor?

Esse ano começamos uma pequena expansão no trabalho. Após o café, nas segundas-feiras, juntamos um grupo de 10 a 15 pessoas e caminhamos até mais perto da praia… nos sentamos numa grama e ali praticamos meditaçãoanapana (respiração), mettabhavana (meditação do amor)… e asanas de yoga… conversamos sobre meditação, o lidar com as emoções, etc. A paisagem é privilegiada: estamos diante da Baía de Guanabara e da Pedra do Pão de Açúcar… árvores e passarinhos por toda a parte… e as pessoas em volta praticando esporte, crianças, grupo de ginástica… todos estímulos positivos… Tem sido de grande efeito. Sempre tem alunos novos, e um fluxo de alunos antigos que retornam. O efeito é muito rápido. Um senhor relatou que em cinco minutos de silêncio pode sentir uma grande paz que não sentia há muito tempo, “uma cura”, disse ele. Outros relatam também desse oásis, desse campo protegido para entrarem em silêncio e obterem um pouco de sossego em suas mentes tão turbulentas no dia a dia da rua.

Num desses dias, logo no início, fizemos as práticas e depois conversamos sobre os efeitos da meditação… sempre realçamos que quando olhamos para dentro percebemos que não somos vítimas de nada, mas que somos nós os criadores de nossas próprias realidades, que a causa do nosso sofrimento está em nós mesmos, e que somos nós que podemos entrar em outro paradigma… após a palestra um senhor pediu a palavra e relatou sua história… há 15 anos tinha saído de casa… brigado com o filha, pois a filha havia escondido o dinheiro para evitar que ele bebesse. Então quando soube que a filha havia escondido o dinheiro… ele sentiu muito ódio dela e nunca mais voltou. E todos os dias, nesses quinze anos, ele se lembrava dela e sentia muito ódio. Mas agora, diz ele: “hoje depois dessa meditação, eu olho aqui para dentro — aponta o coração — e não sinto mais nada… sumiu… não tenho mais ódio… vou ligar para minha filha…”.

Conte-nos, por favor, sobre os professores de yoga?

Estamos abertos a receber voluntários, pessoas interessadas em ajudar, em conduzir práticas aqui com a gente. E não precisa ser exclusivamente professores de yoga. Queremos ter sempre momentos de silêncio, mas podem ser músicos, contadores de histórias, pessoas que trabalham com outras técnicas corporais são todos bem vindos para compormos juntos o trabalho.

Conte-nos sobre o almoço vegano?

Hoje o almoço é fornecido pelo Isha Burguer. São quentinhas veganas muito criativas, Já tivemos bobó de shitake, hambúrguer de lentilha, feijão, grão de bico… é muito saudável. E a Cecília faz e nos traz a comida e quando ela chega, ainda explica sobre o veganismo e a proposta de não fazer nenhum animal sofrer. É uma fala muito coerente que recebe muita atenção. Muitas vezes ela diz: “eu até comeria animal, mas do jeito que a indústria produz… os animais tem uma vida muito sofrida… então meu projeto de vida é cozinhar para as pessoas, minimizando o sofrimento animal.” É muito tocante a fala dela, tanto quanto saborosos e criativos seus pratos.

Andre, por favor, conte-nos sobre a expansão do projeto?

Sonhamos grande. Por que não? Começamos com o café. Mas se você olha para o impacto na vida das pessoas ainda é pouco. Então queremos não só chegar a ter cafés todos os dias da semana, mas ampliar as atividades ao longo do dia. As práticas de meditação e yoga podem acontecer o dia inteiro. Pensamos em atividades esportivas, trabalhos artesanais que gerem renda, cooperativa de reciclagem… estamos abertos… tudo vai depender dos voluntários que vão surgindo… quem sabe, num futuro não muito distante poderemos ter um local para dormir. Estamos sonhando com um projeto de vida em comunidade. E vamos precisar de todo mundo…

O aprendizado ao longo desta entrevista nos trazem imensas reflexões: Quem somos? De onde viemos? e Para onde vamos? Estes questionamentos nos conduzem em único caminho, somos humanos a procura de respostas, entretanto, por vezes negamos ouvi-las em nosso íntimo, sim todas as indagações se aportam e encontram soluções em nós mesmos! O que nos divide como humanidade são as reminiscências culturais de uma sociedade ainda presa em estereótipos que nos separam uns dos outros por status, medo e tantas outras justificativas, porém estes pensamentos e sentimos se instalam em nossos corações quando vivemos isolados, à medida que voltarmos a viver coletivamente tudo o que nos prende ao passado se desfaz e nossos corações se abrem a novas possibilidades e laços de compaixão e solidariedade!

“Solidários, seremos união. Separados uns dos outros seremos pontos de vista. Juntos alcançaremos a realização de nossos propósitos.” Bezerra de Menezes

O projeto “Meditação e Yoga com Moradores de Rua” esta de braços abertos, assim como o símbolo da Cidade Maravilhosa e aguarda cada um de nós!

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“Seja a mudança que você deseja ver no mundo”.  Mahatma Gandhi
Nas palavras de Andre “Vamos precisar de todo mundo”.

(*) Mapeada via: Blog da Cristina Stevanin no Medium