Brincar é o último reduto de espontaneidade que a humanidade tem.

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Via Neae

Lydia Hortélio estava na Universidade de Berna, na Suíça, cursando piano clássico. Naquele dia, tinha dificuldades para tocar um trecho de uma sonata de Beethoven. Suas tentativas frustravam o professor, o húngaro Sandor Végh. Para ajudá-la, ele pediu que imaginasse um rei dançando com a rainha em uma festa da corte e assimilasse, da memória de seus movimentos, o segredo para tocar o minueto. E, então, ele partiu para o meio da sala e dançou como um rei. Lydia olhou para o professor e entendeu tudo, mas não conseguiu executar. Aquela música não estava no seu corpo. Impaciente, o professor voltou-se para ela e disse-lhe: “Que pena que vocês (brasileiros) não tiveram um rei!”. Instantaneamente, seu pensamento cantou: “E daí? E daí?”.

Foi o estalo. A partir daquele momento, Lydia Hortélio começou a procurar a sua música. Não quis mais estudar piano e voltou para o Brasil, mais precisamente para Serrinha, na Bahia. A partir daí, começou a gravar tudo o que ouvia de música popular, mas não sabia ainda como usar o material. De volta à Europa, decidiu estudar etnomusicologia e tomou contato com um trabalho dos compositores Bartók e Kodály, um vasto lenvantamento da música da cultura infantil da Hungria. Percebeu que havia um paralelo com o Brasil e, desde então, vem documentando e coletando tudo o que encontra sobre a música tradicional da infância e os brinquedos, representações do que ela chama de o “Brasil encoberto”.

Neae – Quando o seu trabalho com a música se mistura com o trabalho da educação infantil?

Lydia Hortélio – Quando comecei a estudar etnomusicologia, mostrei a meu professor, o húngaro Sandor Veress, várias cantigas da minha infância. Ele disse: “Pois é, só que a melodia é só uma dimensão de um fenômeno muito mais complexo, muito mais rico, que é o brinquedo ele mesmo”. Até ali eu havia tido uma educação pinçando a melodia das músicas. Então, percebi algo que mudou a minha vida: a música tinha poder de mover uma ação. Em uma música como “olha o camaleão/olha o rabo dele/segura esse nêgo…”, por exemplo, as crianças formam uma fila e uma pessoa é a cabeça do camaleão. Ela canta isso e cumpre um roteiro entrando e saindo daquela fila, e aos poucos vai se formando o camaleão. Isso tudo é o brinquedo camaleão. A melodia, tão bonitinha no começo, agora desaparece, porque a ação dramática é muito mais forte. E há uma infinidade de ações dramáticas com uma linguagem de movimento própria em cada brinquedo. O brinquedo é a palavra, o texto literário; é a música, o movimento; é o drama e o outro, o companheiro de brinquedo. E isso é um todo indivisível.

Neae – E o que essas músicas ou brinquedos representam na nossa cultura, na nossa educação?

LH – Aquelas músicas que a gente cantava na adolescência, por exemplo, quando a menina descobre o menino, o menino descobre a menina, e a gente tira versinhos de amor nas rodas, são, pode-se dizer, as últimas formas de música da cultura infantil. São verdadeiros ritos de passagem para chegar à idade adulta. Fizemos um disco recentemente – o Abra a Roda Tindolelê – em que tento fazer um arco, uma curva de toda a música tradicional da infância com as várias estações que ela tem, começando das rodas de verso da adolescência e crescendo, como gosto de dizer, cada vez mais pequenino, até chegar às canções de ninar. Algumas músicas são nitidamente herança indígena, outras ibéricas, outras da cultura negra. São os arquétipos da nossa cultura.

Neae – Existe uma definição do que é brincar? Quando é que eu sei que estou brincando como uma criança ou como um adulto, se é que é possível brincar como adulto?

LH – Acho que não.

Neae – Então, quando adultos, só podemos aprender a brincar com as crianças…

LH – É a nossa chance ter uma criança perto para ver como é, entrar no movimento outra vez, no mundo dela. Para aprender a brincar, é preciso, em primeiro lugar, não querer brincar. Não pense em querer nada. Você está à toa na vida e, de repente, um gesto lhe chama e você se esquece de você, você entra no brinquedo. É um mistério. Eu não saberia, a esta altura, dizer o que é brincar. Mas é tudo o que mais busco, a inspiração da minha vida. Quando você brinca, você se esquece de si mesmo e faz parte do todo. Na hora, você não tem consciência disso, você é feliz, vive uma inteireza. Brincar é, para mim, o último reduto de espontaneidade que a humanidade tem. É a língua do ser humano. Vamos perdendo essa língua à medida que entramos na escola – e hoje com a televisão. Você está vendo a Xuxa outra vez se aproveitando das crianças e achando que está brincando e levando a brincar. Então, cuidado com isso. No sertão, que é tão seco, quando as pessoas encontram um olho d’água, elas o cercam com todo o cuidado para o animal não pisotear. Acho que é esse olho d’água que está esperando a gente cuidar dele e beber aquela água dali.

Neae– E qual o papel do educador nesse processo de recuperação, de valorização da música e do brincar?

LH – Durante um projeto que desenvolvi na Bahia, em 1980, fotografava meninos brincando, meninos do povo, porque nossos filhos estão confinados e não brincam uns com os outros livremente. Porque um menino precisa de outro menino, não precisa de professor, não. Chega um momento em que a gente vai introduzi-lo nas conquistas da humanidade, é para fazer isso também. Mas para o crescimento dele na sua unicidade como ser humano é mais importante brincar, pois é aí que ele aprende liberdade. Um grande homem alemão, que se chama Friedrich Shiller, diz o seguinte: “O homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra Homem”.

Neae – Em muitas escolas, talvez na maioria delas, existe a hora de estudar e a hora de brincar. Seria necessário mudar o modelo de escola para que não houvesse essa distinção, ou cabe ao professor fazer isso?

LH – Antes de mais nada, esta é uma questão da consciência. É a professora, em primeiro lugar, que deve trabalhar a si mesma, chegar a esse ponto, à consciência de uma compreensão da criança através da cultura da criança. Todo mundo só lê a psicologia do desenvolvimento, o construtivismo, que tem sua procedência também, mas não é a resposta total do ser humano.

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Neae – Que autores influenciaram a senhora?

LH – Eu não li em lugar nenhum, devo dizer isso muito humildemente. Tenho agido de acordo com as minhas descobertas. Encontro inspiração em autores como Schiller, nas Cartas Estéticas. É um pensamento ou outro. E em Walter Benjamin, que diz: “Verdadeiramente revolucionário é o sinal secreto do vindouro, o qual fala pelo gesto infantil”. Foram frases como essas que bateram como um raio, despertando ou confirmando em mim um sentimento que eu tinha e não via em lugar nenhum. Leio e, de repente, já estou pensando em outras coisas.

Neae – Além da construção subjetiva da criança, qual o papel da vivência das brincadeiras na construção de um espírito de brasilidade?

LH – Acho que a música tradicional da infância é o que de mais sensível e mais essencial existe na cultura de um povo. É o nascedouro da cultura brasileira. Nessas músicas do disco, como disse, podemos perceber heranças das culturas africana, ibérica e indígena. Você percebe um substrato e reconhece que aquilo é Brasil. Gosto de dizer: “Qual é o verso que queremos cantar na roda das crianças do mundo?”. O Brasil é para ser cantado e dançado. Se não cantar e dançar, não se sabe sobre o Brasil. Um amigo me disse que aprendeu as músicas do disco que fizemos com o filho de um ano e meio, que mal balbucia. Esse menino está adquirindo a língua-mãe musical, porque está cantando nos vários estilos, gêneros, sem saber as leis internas da música do Brasil, com todas as vertentes dessa música. Então, esse menino é um menino brasileiro. Para mim, esta é a maneira mais feliz de construirmos a identidade cultural.

Neae– Conte um pouco da sua atuação como coletora de músicas, brinquedos, brincos…

LH – Recolhi nesses anos todos representações do fenômeno brinquedo na pintura, na literatura, em achados arqueológicos, coletei músicas tradicionais da infância e objetos-brinquedos. Existem objetos-brinquedos inventados por crianças, criados pelos fazedores de brinquedo, como o clássico Mané Gostoso, um marionetezinho com duas varas que você aperta e faz malabarismos – o Brasil inteiro conhece. Esses brinquedos da cultura popular brasileira têm um princípio de funcionamento que é sempre um exemplo de física. Por ali você entra em ciência também.

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Neae – Quer dizer que esses brinquedos poderiam estar na escola como apoio às aulas de física, matemática…

LH – Claro. Não sei o que a escola está fazendo que não se inspira na cultura popular, em que tudo é elementar. Fácil de compreender e, a partir daí, desenvolver. Se estudarmos a cultura popular compreendendo que ali o Brasil está encoberto, puxaremos o fio do novelo que está ali. A educação do Brasil deveria caminhar por aí, não como um regionalismo, mas como algo muito mais profundo e digno de conhecimento. As crianças procedem por uma construção de conhecimento que não é pelo raciocínio lógico, não é a compartimentalização. Com elas é uma consciência de inteireza, em que o sentir, o pensar e o querer fazem parte de uma unidade.

Neae – Como a senhora tem trabalhado a classificação das brincadeiras da cultura infantil?

LH – Tenho tentado fazer isso, mas às vezes me afasto porque fico com a impressão de que eu quero meter a vida no bolso, quero saber, é uma coisa do poder, que é da nossa cultura ocidental, de que no momento em que você bota no bolso, dá nome, você sabe. E o que vejo é que os tipos e subtipos de brincadeiras, os seus cruzamentos são tão infinitos que me dão um baile. Faço para ver o que tem e como se mistura com algo que esteja ali ao lado, mas não para classificar. Por exemplo, no caso da música tradicional da infância: existem os brinquedos da adolescência, que têm determinadas características. Depois os brinquedos cantados, nos quais a melodia é mais forte. Depois os brinquedos mais ritmados, em que o ritmo e o corpo têm uma expressão maior. Depois as parlendas, mais para as nuances da fala, as cantilenas, que caminham mais para as nuances da voz, mas ainda não são cantigas, depois as cantigas. Procuro também colocar em blocos os brincos, que são os brinquedos dos meninos pequenos, que precisam da ajuda de um adulto. Isso serve para compreender os momentos e o desenvolvimento da criança.

Neae – A senhora poderia explicar o que quer dizer quando denomina seu trabalho como de documentação e recriação?

LH – A documentação é quando eu fotografo, gravo aquilo que vejo, o movimento da criança, os momentos da cultura da criança. Já esse disco é um projeto de recriação. Levei muito tempo para fazer porque achava que era impossível trazer para ele todas essas dimensões da cultura da criança, já que entra só a música. Peguei um grupo de meninos que canta muito naturalmente, não tem aquela afinação exacerbada dos coros de crianças, para guardar a dimensão da espontaneidade e do inacabado, que é a criança. E nós, junto com os arranjadores, descobrimos todas as dimensões das várias vertentes da cultura brasileira que incidem na cultura da infância e as recriamos.

Neae – A senhora está desenvolvendo um projeto voltado para a cultura infantil em São Paulo. Poderia falar um pouco sobre ele?

LH – A Monumenta, do Ministério da Cultura, tem um terreno atrás da Pinacoteca, no bairro da Luz. Fui convidada para criar ali um espaço para a criança, com a cultura da criança, um museu de brinquedos. Vamos recuperar a natureza ali presente e chamaremos o lugar de Quintal da Luz.

Neae – É na linha da Casa das Cinco Pedrinhas?

LH – A Casa das Cinco Pedrinhas ainda não existe fisicamente. É um sonho, inspirado em um poema de Fernando Pessoa, no qual ele, menino, poeta, está brincando – e não jogando, como se diz – as cinco pedrinhas com o menino Jesus, Deus e divino: “Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas/no degrau da porta de casa,/ graves como convém a um Deus e um poeta,/ como se cada pedra fosse todo o universo/ e fosse por isso um grande perigo para ela/ deixá-la cair no chão”. Então, é preciso jogar as cinco pedrinhas para saber o que ele está dizendo. Para entender a compreensão que ele tem da criança, do divino e do ser humano. Eu entendo naquele poema que o ser humano é criança e é divino. E nisso eu encontro tudo o que busco.

Neae – O que seria essa casa?

LH – Um lugar de brinquedo. Onde as crianças pudessem brincar, construir. Em vários momentos surgiram instituições que quiseram fazer esse projeto, mas não deu certo. Depois pensei que não deveria fazer casa nenhuma, que as cinco pedrinhas deveriam existir no coração de cada um que se identificasse com esse sonho, e tomei distância. Não quero que se transforme em um lugar de educação. Ela existe no coração de muita gente que se aproximou de mim e já faz esse sonho à sua maneira, e o que me gratifica profundamente é que cada um faz de uma maneira diferente. Um amigo chega a incluir em seu currículo “membro da Casa das Cinco Pedrinhas” (risos). A Casa das Cinco Pedrinhas pode ser criada em vários lugares.

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Lydia Maria Hortélio Cordeiro de Almeida nasceu em Salvador/BA dia 13 de outubro de 1932. Passou sua infância em Serrinha/BA, é professora de Música e dedica-se à pesquisa e difusão da Cultura da Criança e de Música Brasileira, em particular das manifestações culturais da zona rural do município de Serrinha/BA. Tem participado de vários projetos de Educação, buscando favorecer a inteireza e o movimento da Criança, e despertar uma consciência de Brasil.

Veja também :

Entrevista de Lydia dada ao Mapa do Brincar
Entrevista de Lydia para Familiarte
Iniciação à Cultura da Criança
A gente nasceu pra ser gente

Diálogos Sustentáveis

Link desse post: https://institutotear.org.br/4187

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