O termo infância nasce com a ausência de fala. Gabriela Romeu vai na contramão desse significado e busca dar voz às crianças a partir do projeto Infâncias .
Por Gabriela Romeu e Marlene Peret
“Belo Monte é uma desgraça pra nós, porque tudo que a gente tem ele
quer destruir. Ele quer destruir nossa água, porque tudo o que tem
aqui é nosso, e ele quer destruir. A água é o que precisamos mais.”
Menino Arara da Volta Grande do Xingu
Com arco e flecha nas mãos, os meninos do povo Arara da Volta Grande do Xingu caçam calangos em seus terreiros assim como seus pais saem para caçar o jantar. Munidos de facões e terçados, entram na mata e colhem paus, que, debaixo de uma mangueira de sombra generosa, são habilidosamente esculpidos e ganham contornos de piões. Entre uma e outra brincadeira, em cenas que evidenciam seus cotidianos registrados pela equipe do projeto Infâncias, eles desfiam opiniões sobre a usina hidrelétrica de Belo Monte.
O Infâncias é um projeto que registra a vida de meninos e meninas em diferentes lugares do país. Num país com 60 milhões de crianças e jovens, com idades entre 0 e 17 anos, pouco se reflete um retrato da diversidade de infâncias – rurais ou urbanas. Quando retratadas, as crianças dificilmente surgem como protagonistas de suas narrativas. Talvez essa falta de voz (e de protagonismo) esteja diretamente associada à própria origem da palavra “infância”, que vem do latim “infantia” (in = negativo; fari = falar). O termo nasce com a ausência de fala. Mas o projeto surge justamente na contramão desse significado: busca dar voz às crianças.
Com olhar marcado pelo registro documental, numa abordagem etnopoética, o projeto Infâncias é uma incursão aos quintais do país. No primeiro semestre de 2016, o projeto lança o documentário No meu quintal mora um rio, que navega pelo cotidiano e pelo imaginário das crianças xinguanas, que vivem em quintais que se espalham por rios e florestas.
O quintal é um importante espaço de expressão da infância, do exercício de ser criança. Ao investigar o quintal, aqui entendido como o universo simbólico da infância, também investigamos os saberes, os fazeres e os pensares das crianças. É ali onde as crianças desfiam saberes próprios da infância (ou tecem a cultura da infância). Criam um extenso repertório de brincadeiras, genuína forma de expressão da infância. Num mergulho no rio ou no topo de uma árvore, vivem suas aventuras cotidianas. Sabem de cor quais árvores, plantas e bichos habitam seus territórios. Organizam seu mundo à medida que constroem seus brinquedos.
Em andanças que buscam registrar o cotidiano das crianças a partir do ponto de vista dos próprios retratados, o projeto transita pela infâncias sonoras do Cariri cearense, um oásis no sertão, onde as crianças crescem entre manifestações culturais que são verdadeiros brinquedos. Circula pelas periferias de grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde meninos desafiam a aridez urbana em seus brincares. Adentra os sertões do país, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, região em que crianças e árvores perfazem uma verdadeira simbiose.
Já na região do Médio Xingu, navega por quintais que se espalham por rios e florestas – e estão em intenso processo de transformação. Em visita a povos indígenas, comunidades ribeirinhas e extrativistas, lança olhar sobre uma série de questões que tem objetivo de dar voz às crianças, evidenciando o que dizem e pensam sobre o lugar onde vivem, quais são seus jogos e brincadeiras, que brinquedos constroem com a matéria-prima de seus quintais.
Em muitos dos lugares por onde o Infâncias circula para registrar as imagens e o imaginário das crianças brasileiras, a situação do mundo adulto é marcada por conflitos sociais, culturais, econômicos, ambientais. Não raras vezes as comunidades com as quais dialogamos têm seus territórios ameaçados ou reivindicam a garantia de direito a seus territórios. Entre tantas questões urgentes, a infância muitas vezes cresce na invisibilidade. Nada invisíveis são os saberes infantis.
Autônomas e autoras em seus quintais, meninos e meninas logo se prontificaram a nos apresentar suas aventuras cotidianas. Assim, acompanhamos as crianças em incursões pela mata para caçar passarinhos, em caminhadas para recolher sementes, em banhos e mergulhos de rio, em jogos e brincadeiras na aldeia.
Quando perguntados sobre os brinquedos que eles mesmos constroem, os meninos de uma comunidade de pescadores de Vila Nova, no município de Senador José Porfírio (PA), logo se prontificaram a nos mostrar a jangada. Munidos com facões e terçados, atravessaram o rio Xingu em canoas para buscar na outra margem matéria-prima de seu brincar num aningal. Manipulando os facões habilidosamente, cortaram a aninga e, à beira do rio e entre mergulhos e risadas, construíram coletivamente o brinquedo. Jangada pronta, vão todos navegar pelas águas. Quando acaba a brincadeira, a jangada-brinquedo fica ali pelas beiras, volta a ser natureza.
Rumo ao Alto Xingu, as crianças do povo Araweté apresentam durante uma incursão pela mata, nas proximidades da aldeia, as surpresas guardadas em seu quintal-floresta. A cada parada, uma nova descoberta. A flor da bananeira vira um brinquedo sonoro nas mãos das crianças, que acabam compondo uma sinfonia cheia de sons e gargalhadas. Mais adiante, alguns meninos buscam material para fazer uma canoa e uma voadeira, esta última esculpida rapidamente na mata. Outras meninas tramam pequenos balaios, tecendo imagens de uma criança sabedora de seu quintal.
Os barquinhos surgem também no encontro com as crianças do bairro Açaizal, bairro de palafitas de Altamira que desaparecerá com a criação da usina hidrelétrica de Belo Monte. Dois meninos surpreendem os visitantes com duas voadeiras, uma de aninga e outra de isopor, que ganham motor feito com pedaços de fios e pilhas de brinquedos industrializados. Se o brinquedo é o mesmo, o cenário da brincadeira é bem diverso. É debaixo das palafitas, num fio de água e bastante lixo acumulado, que os meninos do Açaizal fazem navegar seus barquinhos.
Entre jogos de futebol e brincadeiras com taco na aldeia Bakajá, as meninas do povo Xikrin buscam com suas mães barro na beira do rio e modelam bonecas. Assim que o barro seca, elas pintam as filhinhas com o fruto do jenipapo e outras misturas, reproduzindo os grafismos da pintura corporal de seu povo e repetindo a precisão dos gestos de suas mães e avós. O mangará, “coração” da bananeira, também vira bonequinha, pintada e embalada pelas meninas Xikrin.
Pelos quintais do Xingu, a água, a terra, as sementes, os cipós, as folhas e as plantas são matéria-prima do brincar. Pedaços de árvore viram aviãozinho, caroços recolhidos no chão são munição para a baladeira e cipós giram na brincadeira de corda, entre outros tantos brinquedos feitos de natureza. Revelam que a relação da criança com a meio ambiente é de simbiose, consideração que evoca a fala do menino Arara do começo deste texto. E nos leva a questionar: quais impactos ocasionarão as frenéticas transformações desses quintais na vida das crianças da região?
>> Para saber mais sobre as infâncias brasileiras, visite:
Link dessa página: https://institutotear.org.br/4835