Uma beija-flor brincante, guardiã da memória viva das brincadeiras no Quilombo Carcará, na zona rural de Potengi, no Cariri cearense.
Por Gabriela Romeu
Sol a pino e bacia na cabeça, a moça miúda segue na estrada em seus passos ligeiros, cruzando a poeira deixada pelos carros. De rua em rua, anuncia sorridente para a freguesia que tem coentro verdinho e fresquinho para o almoço – R$ 0,30 o maço. Na volta para casa, ainda mais apressada no passo, as moedas vão tilintando no bolso do vestido.
Avança a hora, já é finzinho da tarde, mas o sol ainda não se despediu. A moça que ajuda no sustento de casa com a venda das hortaliças caminha, sempre no seu jeito ligeiro. Tem pressa, mas agora é para entrar na roda, embalar as mãos, jogar versos. Brincar. À sua espera, de mãos dadas, estão meninos e meninas que já ensaiam algumas das cantigas que herdaram de seus pais e avós.
A moça é Bizunga, nome de um beija-flor pequenino e também apelido de menina de Antônia Vieira da Silva Carvalho, moça em seus 49 anos, nascida e crescida no Quilombo Carcará, na zona rural de Potengi. Localizada no Cariri cearense, Potengi é conhecida como a “cidade que nunca dorme” devido ao trabalho dos ferreiros, que entram madrugada adentro criando sonoridades com a batida sincopada do martelo na bigorna – tin, tin, tin, tin.
Quem vê Bizunga na vida diária, garantindo a sobrevivência na roça ou nos fazeres da casa, não imagina a menina que habita a moça nas tardes de brincadeira com os muitos meninos e meninas do Carcará. Todos chegam rapidinho quando ouvem que é hora de brincar de toré. “Desde os meus cinco anos, eu me lembro de brincar de toré aqui no Carcará”, diz Bizunga.
Ela explica que o toré reúne várias brincadeiras de roda. “Quem ensinou foi a ‘tchiá’ Joana, mãe do tio Frauzio”, emenda a brincante, que logo explica que se fala ‘tchiá’ mesmo, com um certo chiado. Entraram muitas tias na roda: Tchiá Joana, Tchiá Maria, Tchiá Tonha, Tchiá Daia.
O folclorista Câmara Cascudo registra, no Dicionário do folclore brasileiro (Global Editora; 2001), o verbete toré: “No auto dos Quilombos em Alagoas, os negros dançam o toré, em círculo, tendo no meio um velho que ‘tira a toada’”. No toré do Carcará, ninguém se refere à brincadeira como sendo “uma diversão ligada a recordações guerreiras”, mas possivelmente estão interligadas pelo fio das tradições quilombolas.
Tchiá Joana era Joana do Couro, que sabia colocar na mesma roda “homem, mulher, menino, adolescente, moça, casado, viúva”. A “dona do toré” tinha um berimbau de cabaça e tocava o instrumento para todos brincarem. “A gente ficava ‘arrodiando’ a Tchiá Joana para brincar”, conta Bizunga, que chega a sentir a sensação de “cabelos voando” quando se lembra de um brinquedo chamado galamarte e que era também a diversão nas noites no terreiro.
Na roda, eram (e são) entoadas cantigas que falam da colheita do maracujá, de requebrados e de Mouras Tortas, de bois e boiadas.
Fulô do i, fulô do a
Vamo apanha maracujá
Fulô do i, fulô do a
Vamo apanha maracujá
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu (pares se formam e dançam)
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu (pares se formam e dançam)
Em cantigas como a que de Dom Miné, Bizunga e as crianças brincam de jogar versos, que são intercalados com o refrão.
Olha o passarinho, Dom Miné
Caiu no laço, Dom Miné
Dais um beijinho, Dom Miné
E dois abraço, Dom Miné
(Aí jogam versos)
Eu plantei e semeei
Carrapicho no vestido
Coisa feia pra eu achar
Homem casado enxerido
Olha o passarinho, Dom Miné
Caiu no laço, Dom Miné
Dais um beijinho, Dom Miné
E dois abraço, Dom Miné
Dentro do meu peito tem
Garrafinha de vintém
Um melinho açucarado
Pra boquinha do meu bem
Alguns versinhos caem na roda para conquistar o namorado, falam de amores ingênuos (outros nem tanto):
Da tua casa pra minha
Tem um riachinho no meio
Tu de lá dá um suspiro
Eu de cá suspiro e meio
Bizunga canta, sua irmã, Francisca, acompanha. Chegam filhas e sobrinhas, que engrossam o coro da cantoria no terreiro. As cantigas de roda são assim passadas de geração em geração no Quilombo Carcará. E seguem cantando os muitos versos que não se perdem em suas memórias e que fazem rir.
Lá vem a garça voando
Com a tesoura no pé
Cortando calça pra homem
E cueca pra mulher.
O toré puxa outras brincadeiras, além das rodas. Assim, de repente, o terreiro se enche de galinhas e pintinhos, que são cobiçados por um gavião esperto, à espreita. Então todos entram em fila, à procura de Seu Grilo, gerando correrias e muitas risadas. Na sequência, alguém grita: “Vamos brincar de Seu Severo!”. O grupo se organiza na brincadeira: de um lado o Seu Vigário e os convidados do casamento; do outro lado, Seu Severo, que não quer saber de ir à igreja e só pensa na festa – o festeiro e o padre disputam os convidados. Surgem também as brincadeiras do grilo, da melancia e do cinturão queimado.
O grupo volta a se arredondar na roda, cantam e dançam:
Seu Zé, Seu Zé
Lá em cima daquela serra
Seu Zé, Seu Zé
Passa boi, passa boiada
Seu Zé, Seu Zé
Também passa a mulatinha
Seu Zé, Seu Zé
Do cabelo cacheado
E só amo quem me ama
Eu só rodo quem me quer
Roda eu, Zé, roda eu, Zé
Roda eu, Zé, roda eu, Zé
Hoje, é Bizunga quem faz o papel agregador de Tchiá Joana – e vive intensamente brincando. Assim como Tchiá Joana e sua sobrinha, Bizunga, há muitos “meninos e meninas crescidos” pelos quintais do Brasil, tanto o rural quanto o urbano. Estão pelas comunidades, ruas, praças e, sim, escolas. São homens e mulheres que cresceram, mas não deixaram de cultivar a essência da infância. Sabem acolher as crianças em sua forma de expressão mais genuína, o brincar.
Na roda, a “menina crescida” Bizunga dissemina as brincadeiras, as cantigas e os versos do Carcará. As crianças recebem, espalham e, sim, transformam esses gestos que vêm sendo transmitidos de geração em geração nessa comunidade quilombola, onde o brincar é sinônimo de (con)viver.*
*Texto originalmente publicado na Plataforma do Letramento, do Cenpec e da Fundação Volkswagen.
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