Nem sempre o brinquedo, para a criança, é aquele objeto produzido industrialmente ou artesanalmente como brinquedo.
Por Angela Meyer Borba e Maria Inês de C. Delorme
Desde o tempo em que eu era professora de crianças pequenas, me divirto (e aprendo!) observando as crianças brincando ou brincando com elas. O que mais me encanta é a inventividade e autonomia com que elas brincam! Já na minha primeira experiência como professora me convenci que, para conhecer mesmo as crianças, é preciso entrar na sua lógica, penetrar nos seus mundos. É como até hoje tento entender as crianças: escutando-as com atenção e levando-as a sério!
Mateus, criança que conheço desde bebê, hoje tem 12 anos, e ainda brinca de uma brincadeira muito própria, que o acompanha desde muito pequeno. É tão curioso observá-lo brincando com sua coleção de lápis de cor, encenando diferentes histórias que vão sendo “desenhadas” por suas mãos e imaginação! Com lápis de diferentes cores entre os dedos de ambas as mãos, e movimentos velozes em todas as direções, Mateus transforma esses objetos – feitos para desenhar, colorir, riscar ou escrever – em protagonistas de uma partida de futebol ou então de uma batalha entre heróis e monstros. E cada um daqueles lápis é um personagem específico, que não se confunde com outros, ele sempre soube muito bem quem é quem. Às vezes bem baixinho, outras elevando o tom de voz, Mateus narra e inventa o que está acontecendo ali: um mundo imaginário que ele cria, no qual tem liberdade de definir papéis e cenários, criar histórias, escolher vencedores e perdedores, enfrentar catástrofes, superar medos, experimentar sofrimentos e alegrias e, o melhor, voltar em segurança para o mesmo ponto em que iniciou sua aventura!
Lembro-me que, na minha infância, eu colecionava lápis de cor. Mas só os que ficavam bem pequenos, os cotoquinhos, como eu os chamava! Não me lembro se eu inventava-lhes personagens, acho que não. Minha atração maior era a estética que se produzia quando se juntavam aqueles pequenos pedaços de madeira com diferentes cores e tamanhos. Com eles, eu fazia diferentes composições, enfileirando-os, dispondo-os de diferentes maneiras, construindo casas, florestas etc.
O que tem em comum essas brincadeiras? Objetos que se transformam em brinquedos; brincadeiras que dão novos sentidos aos objetos. Um mundo próprio imaginado e criado pelas crianças.
Nem sempre o brinquedo, para a criança, é aquele objeto produzido industrialmente ou artesanalmente como brinquedo. Quem nunca viu uma criança pequena deixar de lado o brinquedo que ganhou de presente, porque se interessou muito mais em brincar com o papel de presente e/ou com a caixa onde veio o brinquedo? Para a surpresa e decepção do adulto, que acha que vaiarrasar com a sua escolha, o brinquedo muitas vezes é desprezado pela criança, que prefere interagir com um simples papel e uma caixa! Estes ganham existência de brinquedos, por meio dos gestos da criança – amassar, rasgar, jogar, empurrar, fechar etc.- e do prazer da exploração de texturas, sons e formas. Do ponto de vista da criança, pode ser muito mais bacana essa ação exploratória de diferentes materiais do que, por exemplo, um lindo, caro e colorido brinquedo sonoro, cuja função se reduz a produzir um som ao apertar-lhe um dispositivo!
O que é brinquedo para a criança? O que é brinquedo para os pais? O que é brinquedo para a escola? Será que quando os adultos criam ou escolhem brinquedos para as crianças sabem o que elas desejam? O que faz de um objeto um brinquedo?
Não estou eliminando o valor dos brinquedos industrializados. Hoje, há uma variedade de brinquedos no mercado que oferecem às crianças muitas possibilidades de brincadeiras; outros nem tanto, seja porque são pouco flexíveis e não permitem um uso criativo pela criança, seja porque carregam em si valores e visões de mundo bastante questionáveis, e por outras tantas razões. O que estou tentando defender é que, para brincar, as crianças não precisam de brinquedos caros ou das mais recentes novidades do mercado de produtos infantis. Se é fato que é difícil fugir da força das mídias nas escolhas que fazemos de brinquedos para e com as nossas crianças, ganha mais importância ainda o incentivo que podemos fazer para que elas brinquem com diferentes materiais e com eles imaginem, inventem, criem!
Papéis, tecidos, talheres, caixas, pedrinhas, folhas, areia, terra, galhos, pedaços de madeira, sementes, frutos, objetos descartados como rolhas, tampas, entre tantas outras coisas, podem ganhar novos sentidos nas mãos das crianças. A simples experimentação dos objetos e materiais já é uma brincadeira! O faz-de-conta também pode transformá-los em: carros, trens, aviões, casas, árvores, pessoas etc. As próprias crianças também podem se tornar outros: cachorros, pássaros, aviões, professores, pais, mães, avós, motoristas, vendedores etc. Basta que tenham liberdade de explorar, inventar e imaginar! Também os brinquedos – aqui estamos falando dos objetos confeccionados pelos adultos como suporte de brincadeiras – podem se modificar nas brincadeiras das crianças, que lhes dão novos significados, desviando-os dos objetivos e modos de brincar com que foram pensados. Quantas vezes já vimos (e quem nunca fez isso na sua infância?) uma criança subindo em um escorrega pela rampa – em pé ou se arrastando – para então descer de bruços?
Certamente todos nós temos muitos exemplos e histórias para contar que falam da capacidade criativa das crianças nas suas brincadeiras. Não é à toa que nas redes sociais fazem tanto sucesso os vídeos sobre as peripécias infantis! Mas se na internet esses vídeos ganham milhares de “curti” e compartilhamentos, crianças que pensam e agem “fora da caixa” infelizmente não têm essa acolhida na maioria das escolas, que ainda têm como modelo uma criança que obedece às regras, que atende às ordens e expectativas do adulto, que pensa pela “cartilha escolar”. Por que temos tanto receio de lidar com a criação das crianças? Por que preferimos, muitas vezes, enquadrar esses modos inventivos de ser nos limites de nossos desejos e modos de ver, interpretando-o como sinal de imaturidade que precisa ser corrigido, aparado? Mas esse é um assunto para continuar a conversa num outro dia. Voltemos aos brinquedos!
Hoje, a indústria de brinquedos, associada às mídias de massa, cria desejos e necessidades nas crianças. Os brinquedos “ do momento” geralmente fazem parte de uma cadeia de produtos que passam pela televisão, cinema, roupas, alimentos, acessórios, revistas etc.. Possuir tais brinquedos representa, nas sociedades de consumo, status e poder para a criança, não apenas nos seus grupos de brincadeiras, mas também junto aos adultos. Estes, mesmo sem perceber, incentivam tais desejos, seja presenteando-as com brinquedos assinados, seja utilizando-os como moeda de troca para disciplinar a criança, ou mesmo por meio de significados que vão construindo nas suas interações e conversas com as crianças. Ou o que podemos dizer dos elogios que fazemos às crianças por meio dos produtos que elas portam – brinquedos, roupas, acessórios etc.: linda a sua sandália da Hello Kitty, maneira essa blusa do Homem Aranha; o tênis disso, a mochila daquilo… Isso só faz confirmar para a criança que tais produtos funcionam como selos de qualidade: bonita, fashion, legal, forte, poderosa, entre outros atributos.
A lógica do consumo está tão incorporada nas nossas vidas, que é difícil pensar e agir fora dela. Mas vale a pena resistir e investir junto às crianças em modos de brincar menos atravessados pelo mercado. Temos que pensar que as crianças, desde pequenas, constroem valores e significados sobre o mundo, sobre as relações com os outros e sobre si mesma, e temos responsabilidade sobre isso! Brinquedos e brincadeiras dizem muito sobre valores para nossos pequenos. Que tal proporcionar-lhes brincadeiras mais simples, e nem por isso menos complexas? Brinquedos não precisam ser produtos caros, e sim algo que convide a criança a brincar!
Sem esquecer que, para brincar, é preciso tempo! Tempo livre, sem compromissos com resultados, mas apenas com a experiência de brincar!
Matéria mapeada dos nossos amigos do Papo de Pracinha
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