Cais do Valongo o abrigo da cultura viva

Por Juliana Correia (Tear)

Era uma vez um Cais chamado Valongo.
Testemunha de um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade – o tráfico negreiro – foi construído em 1811 pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro, a mando do então Vice-Rei, o Marquês de Lavradio. Serviu como entrada de homens, mulheres e crianças trazidos forçadamente do continente africano. Surgiu para substituir o antigo porto que funcionava onde hoje é a Praça XV. A região do Valongo era considerada distante o suficiente para esconder da sociedade a cena do desembarque de tantos/as cativos/as, e também as consequentes mortes e doenças trazidas nos tumbeiros.  Aterrado em 1843 para se tornar o Cais da Imperatriz, sob o pretexto da chegada de Teresa Cristina Maria de Bourbon, noiva de D. Pedro II, sofreu outras tantas remodelagens até emergir em 2011, por conta da Operação Urbana Porto Maravilha. Segundo a arqueóloga Tania Andrade Lima, coordenadora da equipe de pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, o Cais do Valongo não foi “descoberto”, como divulgado pela mídia, e sim reencontrado devido as escavações para revitalização da Zona Portuária(*).

As diversas etnias/nações africanas trazidas para cá foram mão de obra escravizada e por séculos fizeram girar a economia brasileira. No entanto, nunca deixaram de ser sujeitos da própria história. Trouxeram suas línguas, suas crenças, seus saberes e fazeres interferindo diretamente nos mais diversos segmentos, como a geografia, a economia, a política, a religião e a cultura. Em se tratando especialmente do Valongo, a influência negra era (e ainda é) tamanha que a região integra a chamada “Pequena África”, designação cunhada pelo compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres em referência ao trecho que hoje equivale a toda Zona Portuária, Gamboa, Saúde, Pedra do Sal, Santo Cristo, se estendendo até a Praça XI e Cidade Nova.

Os cortiços, os zungus, os candomblés, os primeiros blocos e escolas de samba eram/são legítimas representações da força, da riqueza e da diversidade desses povos africanos instalados na “Pequena África”. Povos que se misturaram e estabeleceram uma lógica própria de vida, através das festas promovidas por mulheres como Tia Ciata, da religiosidade de pais e mães de santo como João Alabá e Mãe Aninha, da liderança do negro Aniceto Menezes sobre os estivadores, conduzindo uma greve geral no cais do porto no pós-abolição, em protesto por melhoria salarial – resultando num reajuste de 400%. Aniceto, inclusive, é um dos fundadores do GRES Império Serrano, reconhecido até hoje por sua habilidade de improvisar, sendo uma das maiores referências quando o assunto é jongo e partido-alto.

Os/As africanos/as desembarcados/as aqui, misturados/as aos/às negros/as vindos/as da Bahia e outros locais do nordeste e também das fazendas do Vale do Paraíba, ainda inspiram grupos que atuam de forma independente, desde antes da revitalização especulativa da região portuária. A Roda de Samba da Pedra do Sal, a Companhia Mariocas e o grupo de cultura popular Tambor de Cumba são três bons exemplos disso.

“Toda segunda-feira / tem Roda de Samba da Pedra do Sal”

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Há mais de oito anos, um grupo formado por jovens músicos se encontra aos pés da escadaria escavada na Pedra do Sal, para tocar e cantar as composições de Donga, Ismael Silva, Bide e João da Baiana (quem empresta o próprio nome ao Largo onde tais encontros acontecem), entre tantos outros bambas do tempo em que o samba era proibido por lei. A virtuosidade dos meninos é grande e, há dois anos, foram convidados pelo Teatro Rival para levar ao palco o que fazem toda segunda-feira, ao ar livre, na “Pequena África”. Já inspiraram dissertações em universidades do Brasil e do exterior, incluindo Oxford, e em maio de 2013, foram destaque do jornal espanhol El Paiz. Constantemente homenageiam baluartes do samba carioca e da cultura popular. Um exemplo disto foi o encontro antológico promovido pelo grupo entre os lendários Zeca da Cuíca e o compositor salgueirense Djalma Sabiá. Atraíram tantas pessoas que de uns tempos pra cá, outras manifestações começaram a ocupar o mesmo espaço. Preocupados em ir além do entretenimento, costumam divulgar, em plena roda de samba, o protagonismo negro na História e na formação da sociedade brasileira. Aliam arte e educação porque para os integrantes, o samba não é apenas festejo. Segundo Walmir Pimentel, músico do grupo e professor de geografia:

“O samba é um ancestral sagrado, legítimo porta-voz da memória sociocultural afro-brasileira. Não tem sentido estar neste local apenas para batucar. É preciso divulgar esses nomes, os feitos, informar às pessoas sobre a importância histórica e simbólica dessa região. Só estamos aqui hoje porque esta herança nos foi legada”.

“Maranhão sou eu / Maranhão sou eu”

A Companhia Mariocas, fundada no Rio de Janeiro pelos gêmeos maranhenses Rômullo e Rammon Costta, completou 14 anos. Na vinda, eles trouxeram na bagagem, além dos sonhos, os tambores, as brincadeiras, festejos, toadas, o cacuriá, o bumba meu boi, o tambor de crioula e a vontade de fazer pulsar pelas ruas da cidade maravilhosa toda arte e cultura popular do Maranhão. E foram além. Em março de 2012, participaram do Festival Brasileiro da Universidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos. Aedda Mafalda, bailarina da cia, explica:

“A palavra Mariocas vem da mistura de maranhenses com cariocas. Existe em nós uma grande preocupação em preservar a cultura do Maranhão e também divulgá-la aqui. Para isso, o grupo realiza apresentações, promove rodas e oficinas”. 

Em parceria com a Casa do Maranhão, ponto de cultura estabelecido desde 2011 à rua Senador Pompeu, número 34, realiza ainda ensaios abertos de bumba meu boi. Esta rua, Senador Pompeu, cruza com a Camerino, antiga rua do Valongo, onde eram vendidos/as os/as pretos/as desembarcados/as no Cais de mesmo nome. O passado de covardia e dor perdeu espaço para o colorido das festas em louvor a São Benedito e São José de Ribamar. A colônia maranhense que vive no Rio de Janeiro, em especial a Companhia Mariocas, são mais um pedaço deste Brasil afrodescendente.

Jongo, Coco, Samba de Roda e Dança Afro

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O grupo Tambor de Cumba foi fundado pela bailarina e coreógrafa Ana Catão, em agosto de 2011, e todo terceiro sábado do mês promove gratuitamente uma roda de danças populares no próprio Cais do Valongo, à Rua Barão de Tefé, com muito jongo, coco e samba de roda. Antes, as rodas aconteciam na Praça da Harmonia mas com as obras no bairro passaram para o novo endereço. Ana Catão também ministra oficinas de danças populares e balé dos orixás no Instituto Pretos Novos, outro ponto que integra o chamado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana.** O local é reconhecido como ponto de cultura e recebeu esse nome por estar sobre o antigo cemitério dos pretos novos – como eram chamados/as negros e negras trazidos/as da África que chegavam aqui mortos/as ou morriam após desembarque, por conta dos sofrimentos da viagem transatlântica. O IPN está situado bem próximo ao Valongo, mais precisamente à rua Pedro Ernesto, que antes se chamava Rua do Cemitério.

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Vale informar que, todo mês, antes da roda do Tambor de Cumba, o próprio grupo se reveza e oferece oficinas onde a temática negra é novamente abordada. No último outubro, por exemplo, em homenagem às crianças, houve contação de histórias, oficina de recorte e colagem e confecção de bonecas abayomi. O grupo Tambor de Cumba atua no Cais do Valongo após a roda de capoeira angola do mestre Carlão, coordenador do projeto Kabula e da Roda dos Saberes. Deste projeto nasceu o documentário “Memórias do Cais do Valongo”, onde pesquisadores narram a história da “Pequena África” que os livros didáticos insistem não contar.

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A Roda de Samba da Pedra do Sal, a Companhia Mariocas e o grupo de cultura popular Tambor de Cumba também ajudam a reescrever esta história. Na contramão da cultura de massa, de forma independente e não comercial, ocupam com arte lugares emblemáticos à memória ancestral negra e reverberam a importância de toda essa herança. Seguem, porém, atentos às transformações urbanas e sociais, visto que a revitalização do porto faz parte de um projeto de adequação da cidade, segundo a prefeitura, para mega eventos. Ou seja, a criação de um roteiro turístico e o reconhecimento ao legado africano e afrobrasileiro estão diretamente relacionados aos interesses dos responsáveis pelas reformas do chamado “Porto Maravilha”. Há grande campanha publicitária pelos 450 anos de fundação da cidade, mas não podemos esquecer e deixar de reconhecer como agia a sociedade escravagista do período colonial e os impactos/reflexos dela ainda hoje.

* sobre o tema, veja: Revista de História
** Paradoxalmente a construção do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, embora preserve a memória faz parte de um processo de gentrificação da Região do Porto do Rio de Janeiro. O Circuito inclui seis pontos como referência africana e afrodescendente na Região Portuária. São eles: 1) Cais do Valongo e Cais da Imperatriz; 2) Pedra do Sal; 3) Jardim Suspenso do Valongo; 4) Largo do Depósito; 5) Cemitério dos Pretos Novos; 6) Centro Cultural José Bonifácio.

link dessa página: https://institutotear.org.br/5137

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