Fotógrafo Marcelo Valle relata sua experiência em Mariana/MG após catástrofe provocada por rompimento de barragem de mineradora Samarco

Marcelo Vale

Por Marcelo Valle

Parte 1: Antes de ir…

Sou mineiro, não daqueles que trabalham nas minas, lavras, catas ou jazidas explorando minérios. Sou mineiro, daquele que é definido como “natural” do estado de Minas Gerais. Nasci em Barbacena, lugar que costumo apresentar como uma cidade histórica que não deu certo. Próxima a Tiradentes e São João del Rey, ao contrário de suas vizinhas, não preservou seu patrimônio histórico e cultural. A impressão que tenho é que fez o oposto, apagando o que pode, mantendo-se fiel apenas às relações de poder e subordinada às famílias Bias Fortes e Andradas que se revezam há mais de 300 anos. O fato é ironizado e muito bem lembrando por Fernando Sabino no belo livro “ O grande mentecapto”.

Barbacena é cortada pela antiga linha de ferro da extinta Rede Ferroviária Nacional S.A. — RFFSA. Das lembranças de infância carrego comigo as muitas tentativas de contar os vagões de trens que cruzavam a cidade dia e noite carregando minério. Bem me lembro que sempre perdia a conta. Mal sabia naquela época que era por meio desses trens que Minas sangrava.
Ainda sangra. O minério de ferro é um “commoditie”, uma palavra inglesa que significa “mercadoria”, usada para definir o que costumávamos chamar de “matéria prima”. Produtos de origem primária, praticamente em estado bruto , explorados e vendidos em grande quantidade para o mercado internacional e com preços determinados por jogadas desse mesmo mercado.
Minas é grande. Minas é Gerais. Qualquer desavisado da História que visite Minas com um olhar mais atento percebe que o estado é cheio de riquezas, que no (do) fundo só faz aumentar a pobreza e a dependência. Assim foi, assim é! Esse é o caso de Mariana e de outras cidades que se espalham pelos Gerais. Adentrando os sertões de Guimarães Rosa, isso fica mais claro, tantas são as cidades com nomes de pedras, minerais, gemas, jóias: Turmalina, Diamantina, Ouro Branco, Ouro Preto, Berílio, Lavras Novas, Catas Altas…

Mariana, cidade colonial, primeira capital de Minas Gerais, localizada a 12 quilômetros de Ouro Preto (antiga Villa Rica) e aproximadamente a 90 quilômetros de Belo Horizonte, atual capital. Teve sua origem e economia baseadas na extração de ouro e na agricultura. Trezentos anos depois, com cerca de 60 mil habitantes, a base de sua economia continua sendo o extrativismo mineral. O ouro se foi, o minério de ferro se vai . A economia da cidade cresce a medida em que se expande a atividade mineradora, e com isso cresce também sua dependência

No dia 05 de novembro de 2015, Mariana entrou mais uma vez para a História, agora como protagonista do maior “desastre” ambiental que o Brasil já viu (viu?).

Fiquei sabendo do rompimento da barragem pelas notícias de jornais e pelas redes sociais. Falava-se, sobretudo, da contaminação do Rio Doce. Fiquei impressionado com o que vi, o suficiente para querer ver de perto. No dia 16 de novembro convidei uma velha amiga dos tempos da minha passagem pela Biologia para visitarmos a região atingida. E, para minha surpresa, ela não só aceitou, como alugou uma casa em Ouro Preto, juntou a família, fez as malas , fechou contatos, abriu portas e partimos no dia 05 de dezembro, exatamente um mês após o desastre. Eu não fazia ideia do que encontraria ou se de fato encontraria!

Parte 2: Primeiras Impressões

Saí de Belo Horizonte com destino a Ouro Preto, por volta das 10 horas da manhã, partindo da rodoviária, com previsão de chegada em torno do meio dia. Um par de horas para percorrer os 90 quilômetros que separam as duas cidades. Minha bagagem estava cheia de expectativas. Meus amigos partiram de Juiz de Fora e nos encontraríamos na casa alugada, conforme o combinado. Cheguei mais cedo, fui caminhando até nossa hospedagem, uma linda casa colonial, branca com janelas e portas verdes, bem próxima à Igreja do Rosário. Pouco tempo depois meus amigos chegaram. Vieram de carro,partindo de Juiz de Fora. Um casal de adultos, Bruno e Beth e três jovens, Rafael, Carol e Gabi. Pegaram a velha estrada que passa por Conselheiro Lafaiete e Ouro Branco.

Pico do Itacolomi Divisa de op e mariana

Vale lembrar que nesse dia o desastre completou exatamente um mês. Depois do almoço partimos para Mariana de ônibus, um percurso que não leva mais do que meia hora. Nossa intenção era participar de um ato marcado para as 15:30 na praça Gomes Freire (praça do Coreto) localizada atrás da Matriz. Ficamos sabendo através das redes sociais, chamava-se “Um minuto de sirene”, organizado pela Rede “BentoFALA”, criada por moradores de Ouro Preto e Mariana que se mobilizaram após o desastre. No caminho, já chegando ao centro de Mariana passamos por alguns hotéis que pareciam estar hospedando desalojados pelo rompimento da barragem, essa informação só veio a se confirmar depois. Minha primeira impressão era de que Mariana parecia seguir sua vida normal de uma pacata cidade de interior. A princípio não percebi nenhuma referência ao desastre com exceção de algumas palavras de protesto pintadas em letras pretas na lateral de uma casa: SAMARCO/VALE ASSASSINAS! PIMENTEL E DILMA SÃO CÚMPLICES!

Chegando em Mariana, dia 05 de dezembro de 2015. Chegamos atrasados, um pouco depois das 16 horas. Seguimos para a praça achando que o evento já havia começado. Aos poucos a cidade foi dando mais sinais, a todo o momento víamos circular pelas ruas algumas caminhonetes sujas de barro com uma numeração estampada na lateral e na parte traseira. Estavam a serviço da SAMARCO ou de alguma terceirizada. A cidade estava vazia, com pouco movimento de turistas e moradores, a caminho da praça passamos por dois carros de imprensa estacionados ao lado da matriz. Na praça havia poucas pessoas, não mais que trinta, por instantes achei que estivesse no local errado ou que chegamos muito atrasados. No entanto o ato não tinha começado. “Gente branca com cara de universitários, intelectuais e artistas”, pensei comigo. Desculpem-me o preconceito, mas ninguém com “cara” de trabalhador rural, nem mesmo de morador da cidade. Onde está o povo da cidade? Onde estão os estudantes?

Ato Um minito de sirene praça Gomes Freire  Mariana MG Dia 05 de dezembro de 2015 Por Marcelo Valle

O ato estava vazio, mau sinal. Parece que não houve tempo para mobilização. O evento “ Um minuto de Sirene”, segundo os organizadores, tinha basicamente três objetivos:

1) Realizar um ato em memória das pessoas que perderam suas vidas ou que ainda encontram-se desaparecidas;
2) Relembrar a ausência de um plano de segurança nas comunidades situadas próximas à área das barragens ( a idéia da sirene como símbolo do ato veio dessa ausência);
3) Criar um ritual a ser realizado todo mês até que a situação da população atingida seja plenamente resolvida.

Durante o ato foram lidos em voz alta o nome dos mortos e desaparecidos. Um minuto de silêncio. Flores foram distribuídas e depositadas no centro da praça. Alguns minutos depois uma caminhonete com caixas de som na caçamba circulou pelo centro da cidade reproduzindo o som de uma sirene. Soubemos que um ato ecumênico estava sendo realizado naquele mesmo dia e horário, na Arena Mariana, em memória ao desastre. Imaginamos que talvez esse tenha sido um dos motivos pelos quais a praça estava tão vazia. Mais tarde descobrimos que o ato ecumênico também não estava cheio.

Lista com os nomes dos mortos e desaparecidos
O ato sem a participação de pessoas da cidade, ou até mesmo dos atingidos diretamente pela barragem me pareceu indicar algumas relações:

1) Uma evidente dicotomia entre campo e cidade, entre o rural e o urbano, como se a área atingida (me refiro mais especificamente a Bento Rodrigues) fosse uma área sem importância, área de atraso, pouco povoada e que já sabia dos riscos que corria. Mariana é muito mais do que Bento Rodrigues, tudo não passou de um acidente, portanto a culpa não era da SAMARCO. A culpa era das vítimas, pois, como já foi dito, “eles sabiam do risco que estavam correndo”. Essa impressão ficou ainda mais forte depois de uma breve conversa com uma senhora que trabalha numa padaria na Rua Direita. A conversa teve início quando perguntamos por que a cidade estava tão sem movimento mesmo perto de um feriado (Nossa Senhora Imaculada Conceição). Ela disse que a cidade estava vazia, pois os turistas estavam com medo depois dos acontecimentos, eles na verdade não sabem que o acidente foi na área rural, distante, num “povoadozinho”. Segundo ela, o pessoal da SAMARCO chegou a oferecer recursos para eles mais de uma vez e tentou desapropriar a área. Os moradores não aceitaram as ofertas e estavam pedindo valores mais altos do que os terrenos e casas valiam. Escolheram ficar, logo, em parte a culpa foi deles!

2) Outra impressão clara e que vai se confirmando através de algumas conversas com moradores da região é que há uma naturalização da atividade mineradora. A mineração atravessa várias gerações e bem ou mal é responsável pela maior parte das receitas da cidade. A mineração traz o progresso (?!). Em parte oculta um grau de dependência muito grande em relação às empresas e um medo enorme de ficar desempregados, serem perseguidos ou punidos.

3) Passado um mês do desastre, as pessoas envolvidas diretamente ( os atingidos) já estão cansadas e foram muito assediadas pela imprensa e por organizações, talvez por isso prefiram não se expor.

4) Há aparentemente um discurso hegemônico que favorece as mineradoras e silencia outros discursos possíveis. Mais uma vez parece prevalecer a história única, como se a mineração fosse a única opção para aqueles que vivem ali.

O evento parece ter sido organizado por pessoas ligadas à UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) , embora bem intencionado , pareceu um movimento isolado e com pouca capacidade de mobilização e articulação.

Uma forte chuva desabou sobre a cidade. Voltamos para Ouro Preto. À noite, pouco antes de dormir, nos reunimos e fizemos uma avaliação coletiva do dia. Na manhã seguinte tentaríamos chegar até as áreas atingidas pela lama e rejeitos.
A viagem segue…

Terceira parte: Chegando em Bento Rodrigues

Acordei cedo, pouco antes das 6 horas, o sol já nascera. Uma bela luz pairava sobre o Pico do Itacolomi. Entendi a luz como um convite, não resisti , peguei a câmera e fui dar uma volta pelas redondezas. Todos na casa ainda dormiam. Ansiedade grande, nessa manhã visitaríamos a comunidade de Bento Rodrigues, a primeira a ser atingida pelo rompimento da barragem do Fundão. Encontraríamos dois companheiros do MAM (Movimento dos Atingidos pela Mineração) por volta das 09h 30 min. Eles trabalham na formação e conscientização de trabalhadores sobre os impactos das mineradoras, conheciam a fundo os problemas causados pela mineração e já haviam visitado a área atingida antes e depois da catástrofe. Seriam nossos guias.

Saímos de Ouro Preto rumo à comunidade de Bento Rodrigues, que fica aproximadamente a 35 quilômetros do centro de Mariana. Partimos sem ter certeza se conseguiríamos chegar até as áreas atingidas. Seguimos pela MG-129, que liga Itabira a Conselheiro Lafaiete. A todo o momento cruzávamos com caminhonetes a serviço da SAMARCO/BHP Billiton. Um longo trecho da estrada é ladeada por um maciço grandioso e belo e, ao que parece, já foi “loteado” pelas mineradoras para a exploração do minério de ferro. Pela janela do carro conseguimos ver algumas minas do complexo Alegria, a medida que seguíamos a presença das mineradoras ficava cada vez mais forte.

Em certo momento, paramos no acostamento à beira da estrada, caminhamos um pouco entre eucaliptos até um ponto onde conseguimos ver a mega estrutura da barragem de Germano. Essa é barragem de contenção de rejeitos mais alta do Brasil, com 175 metros de altura e com capacidade total de 200 milhões de m³ de rejeitos. Ao longe é possível ver a barragem do Fundão, que rompeu , liberando cerca de 53 milhões de m³ de água, lama, rejeitos e metais pesados que chegaram até a foz do Rio Doce no litoral do Espírito Santo, deixando um rastro incalculável de destruição e morte. A lama percorreu mais de 600 quilômetros!!!

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As duas barragens estão muito próximas uma da outra, no momento do rompimento estavam sendo realizadas obras de alteamento e unificação entre Fundão e Germano para a criação de uma megabarragem. Há ainda uma terceira barragem nas proximidades, a de Santarém. Embora a barragem do Fundão fosse a mais nova entre as três, começando suas atividades em 2008 ela já apresentava uma saturação precoce. As obras de unificação e expansão associadas a outros fatores podem ter sido responsáveis pelo rompimento. Existe a forte possibilidade de um “efeito dominó” em que o rompimento de uma barragem tenha afetado as outras e a catástrofe possa tomar proporções ainda maiores. Após o rompimento da barragem do Fundão, em diversos locais que visitamos os bombeiros e a defesa civil retiravam os moradores das áreas de risco considerando outro possível rompimento. Vale destacar aqui parte do Relatório Final produzido pelo PoEMAS (Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade)- “Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da SAMARCO/Vale/BHP em Mariana (MG)”:

“As alternativas locacionais propostas no EIA (Estudo de Impacto Ambiental) da barragem do Fundão comparavam o vale do córrego Fundão com os vales dos córregos Natividade e Brumado (este último já em vista de uma futura barragem de rejeito, como descreve o documento), todas próximas à extinta mina do Germano. Chama a atenção o fato da barragem do Fundão ser a única opção, dentre as três alternativas, que produziria impactos e efeito cumulativo diretos sobre as barragens do Germano, ao lado, e Santarém, a jusante, esta última onde se recuperava água para o processo de concentração. As outras duas alternativas se encontravam em outra microbacia, que não drenam em convergência cumulativa em direção à comunidade de Bento Rodrigues. Ou seja, caso outra alternativa locacional fosse escolhida na época, a comunidade de Bento Rodrigues estaria menos ameaçada pelo rompimento das barragens da Samarco. Se a barragem tivesse sido construída em qualquer um dos outros dois vales, possivelmente, os impactos e as perdas causadas pelo rompimento teriam sido menores, pois o povoado estaria mais afastado da barragem ou nem mesmo estaria na rota da lama”.

O relatório aponta também para a possibilidade de que a escolha do local da barragem do Fundão priorizou questões econômicas, reduzindo custos, pois aproveitaria os sistemas das barragens já existentes, evitando mais gastos na implementação em uma outra área.
Seguimos viagem até o distrito de Santa Rita Durão passando por uma estrada sinuosa e cheia de altos e baixos, cortando uma área de preservação ambiental. Cruzando o vilarejo, seguimos por uma estrada de terra por alguns quilômetros até nos depararmos com uma barreira policial interrompendo a passagem.

Nesse momento achei que nossa viagem acabaria ali. Conversamos com os policiais e nos apresentamos como pesquisadores e que gostaríamos de seguir viagem até Bento Rodrigues. Fomos liberados sem problemas.

Seguimos mais alguns metros, de repente a paisagem se descortina , vemos a nossa frente um grande descampado. A princípio lama e nada mais. Com um olhar mais cuidadoso, percebemos entre o mar de lama, os vestígios do que foi uma comunidade. Um cenário macro, destruição a perder de vista. Da lama parece emergir ruínas. Em um instante passam pela cabeça centenas de imagens de filmes catástrofe ou de guerra, parece que o cérebro busca uma ancoragem, mas não há porto seguro. Um frio na espinha. Nada que se aproxime daquilo que vemos com os próprios olhos!

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Cidade símbolo do Rio Doce segurou destroços da barragem
O impacto do rompimento da barragem foi astronômico e afetou inúmeras cidades, que ainda hoje apresentam dificuldades de suprir necessidades básicas da população. 

A viagem de Marcelo Valle não termina por aqui. Aguarde a próxima edição do Astrolábio e os novos capítulos de “A Caminho de Mariana”

Fonte : Perfil de Marcelo Valle na Medium

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