Schirley França e seu mundaréu de brinquedos e histórias populares

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Por Ana Emília

No finzinho dos anos 70 nasceu uma história interessantíssima, que de uma forma ou de outra, vai de encontro com os sonhos daqueles apaixonados pela estrada e pelas artes. Essa história é sobre o Carroça de Mamulengos, uma trupe familiar cuja trajetória se mistura com bonecos, poesias, composições, estradas e artesanias.

Os brincantes Shirley e Babau rodaram muito com a Cia Carroça de Mamulengos e nessas andanças nasceram seus filhos. Maria Gomide, a primeira filha, nasceu na cidade de Natal, num festival de teatro. Antônio em Crato no Ceará, Francisco em Juazeiro do Norte, João em Brasília, os gêmeos Matheus e Pedro nasceram e Fortaleza. Todos se dedicaram às artes e a trupe familiar, atuando ainda hoje em apresentações itinerantes em todo o Brasil. Essa carroça percorreu os quatro cantos desse país levando alegria e colecionando experiências culturais vindas de várias localidades.

A família cresceu e surgiram novos caminhos para essa trupe. A carroças  se seguimentou, as experiências e a coleção de saberes populares também. Schirley a matriarca dessa família hoje dedica-se a disseminar por aí o que aprendeu e desenvolveu ao longo desses anos. Ela guarda histórias e brinquedos incríveis, e trouxe para o Astrolábio, um pouquinho dessa experiência.

Com uma doçura e força tamanha, ela vem até aqui para inspirar essa gente que gosta de gente e que faz da vida um palco de grandes encontros.
palha e chitao pra baixoAntes de embarcar na Carroça de Mamulengos, já era seu desejo viajar fazendo arte? O que te levou a viver essa experiência?

Foi nos tempos de mocidade, que aflorou na minha existência o desejo maior de me comunicar através das artes. Sempre gostei de estudar e descobrir o novo. Quando menina, na escola, participava dos movimentos estudantis, das festividades comemorativas, salas de desenho e artes. Gostava de brincar de ensinar. Um pouco mais tarde, ainda no colegiado, me envolvi nas artes do representar. O teatro cresceu em mim. Sugiram oportunidades em várias formações. As mais significativas foram os anos de teatro amador com jovens de ensino médio “Grupo Retalhos” de Taguatinga – DF, minha cidade natal, que mais tarde seria essa experiência, responsável pela formação de vários profissionais que atuam hoje no Brasil. E ainda a oportunidade de participar de um projeto de formação de plateias com a Orquestra Sinfônica do Distrito Federal, narrando uma obra de Prokovief “Pedro e o Lobo”.

Neste período rico em descobertas, surgiu o teatro de bonecos. Um campo fértil de várias formas animadas: de mãos, de vestir, gigantes, de sombras, de vara e fios. Um universo a desvendar. Conheci o Teatro popular de Bonecos: O Mamulengo. Com uma comunicação envolvente, musical, colorida, uma sociedade em forma de bonecos. Resgatou em mim minha ancestralidade, me reconectando com meus avós, com a cultura do Nordeste do meu País, berço de muitas lutas e glórias. Um teatro vivo. Meu amor maior e norteador do que sou hoje.

Como foi criar os filhos na itinerância? Como conciliava o trabalho com a criação dos pequenos?

Quando conheci o Mamulengo, conheci também o Mamulengueiro Carlos Gomide, pai dos meus filhos. Ficamos juntos e seguimos itinerantes ao longo de 25 anos. Nessa época seguimos para o nordeste para pesquisar sobre os movimentos messiânicos e os artistas e camelôs de rua. A primeira filha a chegar foi Maria, nasceu na cidade de Natal. Aos 2 anos de idade fizemos uma burrinha para ela, um personagem encontrado em vários folguedos. Meus filhos foram nascendo de dois em dois anos aproximadamente. Fomos criando novos bonecos… o bode, o cabritinho, o tamanduá, os Jaraguá. Todos foram passando de irmão para irmão conforme iam crescendo e compondo o espetáculo, brincando conosco pelo Brasil afora. Conforme a família ia aumentando, são oito filhos, eu fui me adaptando às necessidades de cada um, e os mais velhos iam ajudando com os mais novos. Fui a responsável pela alfabetização de todos.

O que, das localidades que conheceram e dos conhecimentos que adquiriram, foi incorporado pela Carroça de Mamulengos? O que aprenderam com as pessoas que tiveram contato durante essas viagens que colocaram na bagagem e incorporaram as apresentações da companhia?

Quando chegamos ao Nordeste, nos depararmos com a dinâmica de comunicação dos camelôs de rua e intuímos que deveríamos apreender esse conhecimento, da oralidade popular, e dar continuidade a essa linguagem que denominamos “camelôturgia”, a dramaturgia do camelô. Incorporando-a em nossas brincadeiras.  Nessa época, restauramos vários bonecos de ventriloquía dos mestres camelôs, e mais tarde, criamos o Cotinho o nosso boneco de ventriloquia, Foi um período muito rico em vivências, quando tivemos contato com muitos palhaços brincantes, Mestres de Reisado, Cassimiro Coco, Banda Cabaçal, Maneiro-Pau, Emboladores e Repentistas, Rabequeiros, Bonequeiras de pano e o nosso querido amigo e Mestre Zezito, em Juazeiro do Norte, que além de ser palhaço, mágico e brincante de bonecos, tinha uma vasta experiência com circo. Nesse período, final de 83, fomos aos poucos nos tornando mais próximos, companheiros de trabalho.

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Da nossa experiência de arte e educação somada à experiência do mestre Zezito, nasceu a Barraca da União, uma escola aberta onde desenvolvemos técnicas para ensinar números de circo: rola-rola, perna-de-pau, passeio aéreo e equilibrismo no arame. Montamos todos esses aparelhos para treinamento de crianças e jovens. Logo tivemos uma legião de pernas de pau, resgatando uma tradição que há muito tempo não se via mais. O mestre Zezito ainda andava em perna de pau, porém, habitava somente às memórias das pessoas a lembrança dos palhaços em pernas de pau. Na Barraca da União fazíamos espetáculos toda noite, seja com a nossa brincadeira, ou artistas populares eram convidados a se apresentar. Rodávamos o chapéu.

Outros personagens também participaram dessa trupe, como os bonecos, como é a relação da família com esses personagens?

Todos os nossos personagens, bonecos, fazem parte de nossa história. Muitos se perderam pelo caminho, mas a maioria dos bonecos estão conosco preservados e integram os nossos espetáculos. São Bois, Jaraguás, Dragão Xodó, mula sem cabeça, entre outros. Eu, particularmente, brinco duas bonecas gigantes. A Felicidade e a Mariana. Com 32 anos de idade, a boneca Felicidade, é uma das primeiras criações da Cia. Carroça de Mamulengos (1983/1984). Confeccionada para estabelecer uma movimentação mais próxima do público e, de forma participativa, interagir com ele. Com uma linguagem própria, inovamos e introduzimos elementos significativos na linguagem do teatro de bonecos, desenvolvendo uma estética particular de unir várias cabaças para formar as partes do corpo de personagens. A cabaça (vegetal em forma de ramas), que de formatos diversos são encontradas no Brasil e em outros países, é utilizada quando seca na confecção de vários artesanatos, instrumentos musicais e utensílios domésticos por diversos povos. Já a Mariama, criada em 1995, a Boneca Gigante que amamenta seu filho Cristino, integra o espetáculo “Histórias de Teatro e Circo”. Traz de forma lúdica, o brilho da maternidade, com poesias e cantigas de ninar.

O que aprendeu nessa vida errante? Qual o conselho você daria aos artistas que querem seguir produzindo nas estradas?

Posso afirmar que acertei mais do que errei. E se errei, foi tentando acertar. Meus filhos são artistas autodidatas e talentosos. São palhaços, musicistas, acrobatas, estudiosos e minhas netas já integram os espetáculos, dando continuidade à tradição, brincando os mesmos bonecos brincados pelos seus pais, meus filhos.  Atualmente estou com eles no elenco dos espetáculos “Felinda” e “Pano de Roda” e desenvolvo oficinas de bonecos, brinquedos e contação de histórias. Além do espetáculo “Há Felicidade”, trazendo a boneca para fora de sua caixa após 30 anos e recentemente ingressei no curso de Pedagogia da UFF.

Aos sonhadores que buscam a itinerância, aconselho que se liguem aos afetos, às memórias, que reconheça as tradições e a importância de sermos artistas\pessoas comprometidas com as oralidades a serem compartilhadas de uma geração a outra. De forma consciente, integrem as lutas populares e bebam da fonte criativa, genuína e diversa da cultura popular brasileira e multipliquem os conhecimentos.

Construção da boneca gigante Aurora – Mundaréu de Brincadeiras – Tear

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