revisar o que entendemos por deficiência passa por refletir sobre hábitos naturalizados

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Capacitismo é a discriminação direcionada às pessoas com algum tipo de deficiência, dada sua condição. Primeiro de tudo, vamos esclarecer um ponto: é ofensivo chamar uma pessoa com deficiência de “deficiente”. Pare um momento para refletir o uso desse termo. Você está resumindo a pessoa por uma condição física que ela possui. Você escolhe um aspecto daquela pessoa e utiliza como definição dela enquanto ser. Apenas parem, por favor, já passou da hora.

Na Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, ficou decidido que o termo a ser utilizado seria “pessoas com deficiência”. Conforme a Portaria nº 2.344, de 3 novembro de 2010, da Secretaria de Direitos Humanos, em seu art. 2º, inciso I, o termo passa a ser “pessoas com deficiência”, seguindo a orientação da Convenção Internacional.

Até uns 30 anos atrás, era comum utilizar termos como aleijado, inválido, etc. Até que a ONU institui o termo “deficientes”, sendo alterado posteriormente por “portadores de deficiência”, até que chegamos no termo atual. Mas eu tenho certeza que até hoje você ouve aleijado e inválido por aí. E, no caso de pessoas com transtornos psicológicos, o uso de palavras como “louco”, “maluco”, “doido”, e assim por diante, ainda é, infelizmente, muito comum e naturalizado.

Aqui na minha cidade, Cocal do Sul, em Santa Catarina, temos um micro escolar com adaptações para que a cadeira de rodas suba por um elevador. Sabe como se referiam a este micro? “Cadeirantes”. Preciso explicar o quão errado isso é? É apenas um micro ônibus. São pensamentos e atitudes assim que, às vezes até mesmo sem a intenção, reproduzem capacitismo.

A sociedade, sempre tão apegada a um padrão, me diminuiu e me fez ter vergonha de mim mesma por precisar de ajuda de um objeto para andar. Não consigo contar quantas oportunidades eu perdi na vida, o quão complicado foi me formar na faculdade tendo que lidar, além de tudo, com uma cadeira que pifava ou furava os pneus e eu ficava sem minha mobilidade, com elevadores que não funcionavam, com rampas que eram obstruídas por carros. Não consigo contar quantos empregos perdi por não poder simplesmente pegar um ônibus e ir trabalhar, ou quantos não me deram a chance por terem que adaptar uma rampa ou por acharem que eu não sou capaz. Não sei contar quantas vezes deixei de ir em algum lugar, perdi show, festa, porque o local não é adaptado ou a cadeira não cabe no carro. Não sei contar quantas pessoas paravam na rua para perguntar não a mim, mas à pessoa que estava comigo sobre o que eu tenho, com tom de pena ou curiosidade. Quantas vezes fui vista como exemplo por superar as dificuldades, quando essas dificuldades foram criadas por esta mesma sociedade que me elogia. Não sei contar quantas vezes ouvi que é até bom que eu ganhe bastante dinheiro para me virar sozinha, porque é complicado eu conseguir um marido que vá me ajudar, é como se casasse com uma criança que precisa de ajuda e cuidados. E ano após ano, a sociedade me diminuiu e fez eu me diminuir, me sentir pior que pessoas “normais”, me sentir incapaz, como se estivessem certos. Cheguei a não entender o porquê de viver se tudo seria assim sempre.

Isso tudo me influenciou diretamente. Eu tenho vergonha de pedir ajuda, mesmo hoje que desconstruí boa parte dessa influência em mim. Eu não gosto de pedir ajuda porque acho que estou atrapalhando as pessoas. Eu tento amenizar minhas limitações quando estou com alguém, para que ele não veja o trabalho que é ficar comigo e não corra de imediato, então eu tento ao máximo segurar alguma dor que eu sinta caso esteja sentada desconfortável só para não pedir ajuda para me ajeitar, eu finjo que consigo levantar um copo de vidro e enrolo o tempo todo, acabando por passar sede, porque não quero que ele veja que não consigo nem levantar um copo.

Você vê o problema? Eu não tenho vergonha de usar cadeira de rodas porque tenho consciência de que não sou pior que ninguém, só estou sentada, só preciso de algo para me locomover. É uma cadeira! Uma cadeira! Isso me torna alguém pior? Por quê? Eu não entendo. Mas no dia a dia, eu acabo me diminuindo, desejando não ser tão debilitada, e eu mesma me enclausuro no preconceito que sofri a vida toda.

Ainda estou trabalhando muita coisa em mim, me aceitando. É um processo longo. Às vezes acho que é um processo vitalício. Mas quanto mais a sociedade joga seu capacitismo em mim, mais barreiras cria enquanto discursa bonito sobre como os “deficientes” são exemplos de superação. Superando o muro que eles construíram, tijolo por tijolo. Comecem a tirar os tijolos.

Graziano Locatelli

Desculpe, mas minha existência não é para lhe ensinar lições, saciar sua curiosidade ou servir de exemplo. É necessário e urgente darmos um basta na reprodução do discurso capacitista. Imediatamente. Se desejamos uma sociedade inclusiva, devemos abandonar comportamentos que somente segregam e excluem. Chega de capacitismo.

P.S.: Falei de um ponto de vista inteiramente pessoal, não posso falar por todas aquelas que são pessoas com deficiência, pois cada tipo de deficiência acarreta uma série de preconceitos capacitistas diferentes. Nem mesmo todas as pessoas que utilizam cadeira lidam com as mesmas barreiras, nem da mesma forma. Quando eu digo que eu não consigo filtrar todo o capacitismo que recebo, não quero falar em nome de todas as pessoas que usam cadeira de rodas. Quero ser positiva e crer que vocês conseguem filtrar melhor que eu, pois caso ainda não saibam: vocês são maravilhosas e capazes de tudo aquilo que realmente quiserem.

Fonte: Matéria mapeada na revista  Capitolina.