Sua imagem contemporânea e a visceralidade experimentada
Por Ana Emília
Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, de nome artístico Frida Kahlo, se tornou ícone da cultura e das lutas na nossa América, e assim, de afeto em afeto, virou para muitos e muitas mundo à fora, apenas Frida.
Frida se tornou uma referência e inspiração para tantxs que não veem sentido em admirar padrões. Suas vivências e conflitos internos deram corpo a boa parte de sua produção e levaram a artista a elaborar seu cotidiano de forma visceral. Aliás, não é por acaso que ela acabou se tornando uma das mulheres mais influentes na contemporaneidade. Frida foge dos padrões esteticamente aceitáveis e esquiva da invisibilidade que recai sobre as pessoas com alguma deficiência.
Ela encontrou em seu corpo a beleza da sua existência, transmutando dores físicas e sociais em matéria criativa. Subversiva e excêntrica, em vida, ela não entendia essas características, sinônimo de uma liberdade pueril, ao revés, traduziu em suas pinturas e em seus diários as angustias e contradições que participavam de sua vida, as limitações e também as imagens oníricas de seu repertório pessoal. Politizada e muito atenta aos acontecimentos políticos locais e globais, Frida fez do seu corpo uma ferramenta política de outra ordem, um lugar de resistência. Sua pintura se abriu ao cultivo da beleza intrínseca à vida, essa ágora que não exclui conflitos, vacilo, as alegrias, traições e paixões.
Em meio a um amplo e complexo universo criativo, sua obra deixou muitas reflexões sobre as complicações de saúde, embaraços ao lidar com as sequelas da poliomielite – doença que contraiu aos seis anos de idade e levou a amputação da sua perna esquerda na vida madura – e impasses que marcaram sua vida após o acidente que sofrera aos 18 anos.
Frida teve uma infância estranha para as meninas de sua época. Por conta da doença acabou ficando com uma perna maior que a outra e com os músculos bem fracos, o que motivou seu pai a incentivá-la a fazer vários exercícios de resistência, como andar de patins, jogar bola e praticar lutas. Na adolescência, surge um novo contratempo, um acidente de trânsito que a deixaria um mês no hospital, além de 35 cirurgias ao longo da vida. Apesar dos pesares frequentemente documentadas, ela era dona de uma energia tamanha, e quando se viu fadada ao leito doméstico resolveu se afastar dos estudos da medicina e colocar sua vida em obra por via da pintura.
Não é nenhuma novidade entender os motivos pelos quais essas particularidades do seu corpo fiquem nos bastidores da indústria do consumo, o capacitismo era e ainda é um hábito incrustado em nossa sociedade. Por isso vale salientar que essa vontade pela vida é inspiradora, encarna a força e o autoconhecimento como matéria viva contra a pior das criações humanas, a limitação. E se hoje é difícil, imagine como eram interpretadas as deficiências no início do sec. XX. Além da inexistência de preocupações em relação a acessibilidade, os preconceitos marcavam o cotidiano dessas pessoas sem alívio.
Foi nesse contexto que Frida reinventou seu corpo, criou um estilo próprio, ao usar roupas com motivos indígenas e adaptações aos artefatos que deveria usar, como o colete ortopédico, e se emancipou de convenções culturais, ocidentalistas, baseadas no mérito e na capacidade. Por amor ao destino, foi ela quem atropelou às limitações, ao ponto de ser levada em sua última exposição junto da cama, que a abrigava justo por um comprometimento de saúde.
A imagem da Frida está hoje em todas partes, junto à do Ché e à do Miles Davis, entre outros ícones da cultura pop que povoam capas de caderno, bloquinhos, botons e blusas. Todavia, por mais que a chamada “cultura pop” – na sua relação intima com a cultura de massa da indústria do entretenimento – tenha tratado de reduzir sua vivência em imagens cada vez mais pasteurizadas, esperamos que a overdose de Fridas possa ser apenas o gatilho para instigar a curiosidade das pessoas a saberem mais sobre sua estada no mundo e refletirem sobre os efeitos de sua atitude afirmativa diante da vida e dos conflitos humanos, passiveis a todos nós.