Os nossos círculos e as cirandas da tradição
Por Ricardo Gonçalves
Nos primeiros dias primaveris desse ano, o Tear realizou o tradicional Círculo da Infância,um lindo espaço de encontro entre aqueles que vivem, pensam, discutem, pesquisam, ou que de alguma maneira manifestam interesse pela relação entre infância, arte, cultura e brincadeira. Nessa edição, as rodas de conversa, brincadeiras, oficinas e histórias tiveram o propósito de dialogar com os temas “Os ritos de passagem da infância” e “O lugar da criança no mundo”.
Cumprindo a tradição de trazer alguma vivência da cultura tradicional brasileira, o evento contou com a participação da menina Maria Evangelista, criança que até bem pouco tempo ocupou o papel de rainha no Reisado dos Irmãos, da cidade de Juazeiro do Norte no Ceará, de sua avó Isadora Ferreira, bem como dos mestres desse mesmo reisado, os irmãos Antônio e Raimundo Ferreira.
O Reisado dos Irmãos não é apenas um grupo tradicional de reisado, senão também resultado do trabalho de uma cooperativa de artistas populares liderada por Antônio Ferreira. Essa cooperativa incentiva e fomenta o desenvolvimento e as ações de outros grupos culturais como: reisado infantil; reisado de mulheres; quadrilha junina; maneiro pau (dança de roda em que cada brincante bate ritmadamente o seu bastão, uma vez contra o do brincante que lhe fica à direita e outra vez contra o que lhe fica à esquerda) adulto e infantil; banda cabaçal (cujo instrumento é a cabaça) adulto e infantil, além de outras iniciativas sociais e educacionais com aproximadamente 270 famílias da comunidade de João Cabral, bairro da cidade de Juazeiro do Norte.
A mim, foi oferecida a nobre incumbência de recepcionar e passear pelo Rio de Janeiro com esses distintos convidados, algo que prontamente aceitei, especialmente porque muito me interessou a possibilidade de estar, ainda que apenas por alguns instantes, mais próximo às pessoas que vivem uma realidade tão diferente da que encontro habitualmente e que possuem saberes e fazeres sobre a cultura tradicional do reisado, assunto do qual eu muito pouco conhecia.
Com uma sugestão de roteiro para esse passeio, definido coletivamente com alguns integrantes do Tear, e de posse de poucas informações acerca das pessoas com quem iria passar as próximas horas, encontrei-me com os quatro integrantes do Reisado dos Irmãos, no local onde se hospedaram, numa sexta-feira nem quente, tampouco fria….nem de chuva, tampouco de sol….um dia típico de outono nesse início de primavera. O relógio apontava pouco mais de 10h00 da manhã, horário agendado para apanhá-los, portanto sabia que me aguardavam.
Não por acaso, o primeiro encontro se deu com Isadora, ou com Dôra, como prefere ser chamada, que me aguardava na entrada do Hostel em que estavam hospedados. Em seguida conheci a menina Maria. Por fim, os irmãos Raimundo e Antônio que nos fizeram esperar por alguns minutos, enquanto davam conta dos últimos preparativos para o passeio. Digo que não foi acaso porque esse fato revela um pouco de como cada um deles se coloca e no papel que ocupa no grupo Reisado dos Irmãos.
Entretanto, essa clareza de sentido eu alcancei apenas depois ao refletir sobre esse e outros elementos que surgiram ao longo desse encontro. Após conhecê-los, ficamos prontos para o passeio. Para minha surpresa todos já conheciam a cidade do Rio de Janeiro e seus locais mais prestigiados. Tomei isso como um desafio: levá-los a um local que ao mesmo tempo fosse desconhecido e interessante para eles. Assim, sem alterar quase nada a sugestão de trajeto pensada anteriormente, defini nosso percurso com a Pedra Bonita e sua rampa de salto de parapente e asa delta como primeiro ponto de parada.
Na sequência, uma breve visita à Vista Chinesa, almoço e passeio na orla de Copacabana e o retorno ao Hostel, mas não sem antes uma rápida passagem pela lagoa Rodrigo de Freitas. Acredito ter contentado a todos com as escolhas, entretanto guardo a sensação de que fui eu o maior beneficiado pelo passeio.
No tempo em que estivemos juntos nesse dia, bem como no seguinte durante as atividades do Círculo da Infância e nas caminhadas de deslocamento entre o Hostel e o Tear, e a partir da construção de um pequeno vínculo, pude conhecer um pouco mais sobre o universo dessas pessoas, suas realidades, crenças, valores, alegrias, dores etc. Nossas conversas quase sempre transitaram pela experiência que eles possuem sobre o reisado. Soube por exemplo, que a manifestação dos Reisados da região do Cariri no Ceara, em muito difere da Folia de Reis ou Festa de Santos Reis como também é conhecida aqui na Região Sudeste, embora ambas tenham sido introduzidas pelos portugueses no período colonial.
Conservo a sensação de dificuldade em encontrar uma única classificação para o que seja a manifestação do Reisado dos Irmãos, cortejo popular, brincadeira, teatro de rua, auto religioso auto profano, dança, música, jogo de espada? Há uma múltipla combinação desses variados elementos artísticos na composição de uma narrativa brincante que envolve a atuação de personagens diversos como o rei, rainha, princesa, príncipe, embaixador, mestre, contra-mestre, guerreiros, Catirina e Mateus (também conhecido como palhaço). Parece-me que a atuação de mulheres, crianças e homens se dá por meio de um processo de encantamento ao assumirem os papéis desses vários personagens, dentro de um enredo que é construído há muito tempo pela coletividade.
Por um lado, se há dificuldade em categorizar qual seja essa manifestação da cultura tradicional brasileira, por outro fica muito evidente a intenção por trás do envolvimento das crianças nesse processo. Desde muito pequenos, meninas e meninos são inseridos nesse universo, ainda que para eles o atrativo seja a oportunidade de participar de uma grande brincadeira. Penso que aos olhos de uma criança, talvez o reisado seja um grande festejo com um forte apelo estético materializado pelas cores, fitas, espelhos, espadas que adornam toda uma indumentária característica que nos remetem ao período medieval. Soma-se a isso outros dois elementos artístico muito sedutores para as crianças: música e dança, que têm na figura do mestre o seu grande regente. Há uma grande variedade de cantos e passos utilizados para a encenação de temas como amor, guerra, devoção, ente outros. E em todos eles as crianças são convidadas e convocadas à participarem em resposta aos comandos e solos do mestre.
Ao garantir a participação das crianças, tanto nas manifestações tradicionais, quanto nos grupos infantis, esses mestres brincantes estão assegurando não apenas a formação de meninos e meninas sobre os princípios e valores compartilhados coletivamente pelos envolvidos na realização do reisado, mas sobretudo asseguram a transmissão geracional dessa rica herança cultural. A presença da menina Maria, brincando, cantando, jogando espada com seu avô, o mestre Antônio Ferreira, é a experiencia concreta dessa transmissão entre gerações.
Há um olhar que reconhece a criança enquanto sujeito de direitos, desejos, potencialidades e que deve exercer a liberdade de se estar brincante também nos espaços em que se vivenciam as diversas formas de manifestação da cultura popular brasileira. Esses meninos e meninas sentem-se também rei e rainha, bem como o rei e a rainha do festejo.
Identifico ser esse um grande e belo aprendizado resultante desse encontro com os integrantes do reisado dos Irmãos. O reconhecimento do valor e da importância que eles atribuem à presença da criança dentro desse processo de criação, promoção e difusão dos folguedos folclóricos tradicionais. Ainda que as representações culturais venham a passar por modificações que a modernidade exige, a atuação das crianças assegura a manutenção das tradições, ao passo que exerce um papel fundamental na cultura e na formação identitária da população a qual estão inseridas e enquanto gente brasileira.
Após me inteirar de todas essas informações durante o convívio nesse período, retomo aquele primeiro momento de encontro com Dôra, Maria, Antônio e Raimundo. Ter me deparado inicialmente com Dôra me fez pensar que, apesar de não assumir nenhum papel na encenação do reisado, ela também ocupa um importante papel de liderança do grupo. Percebi que nenhuma decisão é tomada sem consuta-la antes e que fez parte desde o início da formação do Reisado dos Irmãos. Pessoa de referência que está sempre à frente no que diz respeito a manutenção e organização do grupo.
Maria, sempre ao lado dela segue os passos da avó, cumpre a função de herdeira das tradições, dos saberes e fazeres que dão forma e sentido a esse legado. Quanto aos irmãos Antônio e Raimundo, assim como os papéis de mestre e Mateu que ocupam, respectivamente, na atuação do reisado, entrem em cena somente após garantirem que todos os preparativos para o espetáculo estão assegurados.
Por fim, ao refletir e resgatar em minha memória os traços desse rico encontro, agradavelmente me deparo também com registros sonoros que ecoam assim:
“Reisado é bom /Reisado foi minha infância / inda hoje eu tem lembrança / do Reisado que brinquei / chegou a vez /eu hoje tô recordando / e a velhice desmanchando / o que mocidade fez”
Veja como foi o Círculo da Infância 2016 no vídeo registro feito pelo Tear durante o evento: