O Largo da Fábrica das Chitas

Tijuca de Rua em Rua e 100 Anos da Praça Saens Peña

Por Lili Rose Cruz Oliveira*

De início, a denominação Tijuca era usada para indicar a serra, a floresta e o pico. Por sua vez, o Engenho Velho compreendia o trecho da Rua Haddock Lobo e o começo da Rua Conde de Bonfim. A designação Andaraí Pequeno correspondia à região do Largo da Fábrica das Chitas (futuramente Praça Saens Peña) e às áreas margeando o Rio Maracanã até a subida do Alto da Boa Vista. Em 3 de julho de 1871, a rua (caminho ou estrada) do Andaraí Pequeno recebeu o nome do  capitalista e proprietário de terras,  José Francisco de Mesquita, quando ainda tinha o título de Conde de Bonfim. O Andaraí Grande abrangia o que é hoje Andaraí, Vila Isabel e Grajaú.  Essa rua ficou depois conhecida como Barão de Mesquita. Vale lembrar que todas as pessoas mencionadas no presente parágrafo foram personalidades de destaque no Império e moradores da Tijuca. As homenagens ocorreram quando ainda estavam em plena atividade profissional, residindo nas ruas que receberam seus nomes. Muito chique…

“Cerca de seis milhas ao Oeste da cidade está situada a aldeia do Andaraí, onde começa a subida às Montanhas da Tijuca por um caminho outrora áspero, cheio de rochas e penhascos, quase intransitável durante a estação das chuvas, melhorando posteriormente, permitindo até a passagem de carruagens. Nesta aldeia, vários comerciantes brasileiros ricos possuem vivendas campestres e foram estabelecidas uma fábrica de papel e uma tecelagem e estamparia de algodão, se bem que com pouco sucesso.”
(Tenente Henry Chamberlain, entre 1819 e 1820)

Henry Chamberlain era o filho mais velho de Sir Henry Chamberlain, cônsul geral e encarregado de negócios de Sua Majestade Britânica no Rio de Janeiro, no período de 1815 a 1829. Serviu na Real Artilharia Inglesa no Brasil, mas é mais conhecido como pintor e autor de Vistas e Costumes do Rio de Janeiro, obra relevante dessa época. Com o resumido texto acima, o tenente Chamberlain conseguiu, em poucas palavras, descrever o aspecto geral da Tijuca nas primeiras décadas do século XIX, fazendo, inclusive, menção à incipiente atividade industrial desenvolvida na região. Isto porque, em 1820, quando no Brasil tudo se importava, surgiu no Andaraí Pequeno a Fábrica das Chitas, instalada por José Joaquim da Silva.

fabrica da chitas

Nessa época, o Largo da Fábrica das Chitas nem de longe parecia uma praça. Na verdade, era apenas um espaço vazio, resultante do encontro da estrada do Andaraí Pequeno, hoje Rua Conde de Bonfim, com a travessa do Andaraí (também conhecida como rua da Fábrica das Chitas), atual Rua Desembargador Isidro.

“A palavra inglesa “chintz” deriva do termo indiano “chint”, que significa um tecido de algodão mais barato, estampado em toda a sua superfície de forma vívida, com um brilho encerado devido ao uso de goma. Geralmente traz desenhos de flores, frutas e pássaros, sendo popular desde o século XVII. Com o tempo, o termo passou a definir todo tipo de tecido exportado da Índia colonial para a Inglaterra que apresentasse padronagem floral complexa. (…) A padronagem chegou ao Brasil através dos portugueses, que também mantinham negócios com a Índia”. saiba mais

Essa manufatura na região do Andaraí funcionou durante 20 anos. Apesar de ser considerada “fábrica”, sua produção não era nada complexa, pois só estampava tecidos de algodão vindos da Índia. Mesmo sem obter sucesso comercial, como bem observou o tenente Chamberlain, a Fábrica das Chitas permaneceu durante quase um século como referência do lugar.  

O Imperador D. Pedro I (1798-1834), numa das cartas a sua amante, a Marquesa de Santos (1797-1867), se referiu à Fábrica das Chitas, em 18 de novembro de 1826.

“Meu amor, minha viscondessa e meu tudo,

Neste momento são nove horas e um quarto. Chego do meu passeio com a minha senhora, vindo da Fábrica das Chitas e do Papel, que ainda o não faz, e de ter entrado na chácara do visconde de Barbacena, onde me não apeei e lhe falei a cavalo mesmo. Estimei muito saber que mecê e nossos filhos passaram bem. Bem desejei que lhe fosse escrita em papel brasileiro da fábrica, mas por ora ainda o não há, que pouco espero assim não seja. Agora, meu encanto, só me resta dizer-lhe que é e será sempre.

Seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro amigo e amante do fundo da alma

O Imperador”

Os problemas não consistiam apenas no abastecimento de água, visto que a citada fábrica foi socorrida financeiramente várias vezes. Em fins 1826, a Junta do Banco do Brasil fazia publicar a primeira loteria em benefício da Fábrica de Estamparia e Papel, no Andaraí, cuja extração principiaria impreterivelmente no dia 8 de janeiro de 1827. Os bilhetes achavam-se à venda no dito banco e na loja de livros de João Pedro da Veiga e Companhia.

No livro intitulado “Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos”, o historiador Alberto Rangel registrou ainda alguns comentários e citações sobre as fábricas desse local. Na Fábrica de Chitas existia também uma indústria de papel, que foi inaugurada em 5 de  setembro de 1821. Sete anos depois, passando por dificuldades, o co-proprietário da fábrica, Carneiro Constantino Dias Pinheiro, solicitou ao intendente da polícia uma licença para a realização de obras visando à captação adicional de água, o que infelizmente lhe foi negado. No entanto, para fins de escoamento, a ele foi permitido construir um aqueduto que ligava a Fábrica de Chitas, pelo Maracanã, até o Campo da Aclamação (hoje Praça da República).

Alberto Rangel conta também que, em 23 de fevereiro 1829, o intendente de polícia autorizou o sócio da fábrica, Felipe Néri da Silva, a usar armas para defender a empresa. Tal fato revela que a fábrica estava sendo vítima de arrombamentos e de roubos.

sans penaAlém disso, o historiador menciona um trecho do discurso do Conde de Gestas, Cônsul-Geral da França no Brasil e morador do Alto da Boa Vista, sobre o estado da indústria na cidade do Rio de Janeiro. Tal discurso foi proferido em 6 de novembro de 1836, na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional :

Pouco tenho a dizer da Fábrica de Papel e Estamparia situada em Andaraí. Se se atender ao número de loterias que em todo tempo têm obtido para seu andamento, dificilmente se poderá explicar por que não tenham sido maiores os resultados.
(Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos, 1984, p.107)

Ainda segundo Alberto Rangel, o Almanaque Geral do Império do Brasil, redigido em 1836 por Sebastião Fabregás Surigué, dá como existente no Andaraí a fábrica “Estamparia de Chitas e Papel”.  A manufatura de chitas faliu duas décadas depois. A de papel permaneceu em funcionamento por algum tempo, de posse do Sr. André Gaillard, produzindo papelão e papel pardo. Há também o registro de que este proprietário procurava vários materiais indígenas para substituir os trapos usados como matéria prima.

O antigo Largo da Fábrica das Chitas foi reformado e transformado na Praça Saens Peña. Uma homenagem ao presidente argentino Roque Saenz Peña, que esteve no Brasil em visita oficial. A cerimônia de inauguração da praça ocorreu no dia 30 de abril de 1911 e contou com a presença do Prefeito Bento Ribeiro, que foi nomeado pelo presidente da república eleito em 1910, o Marechal Hermes da Fonseca.  

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Largo da Fábrica de Chita – Tijuca – 1910

*Lili Rose é tijucana, formada em História da pela Faculdade de Humanidades Dom Pedro II(1985), tem especialização em museologia pela University of Nevada – Reno (1990). Foi professora do Instituto van Gogh ( 19860 1987), coordenadora do Instituto Cultural van Gogh (1999 – 2001)  e curadora convidada da Nevada Historical Society (1988 – 1990). Desde 2002 desenvolve trabalhos sobre o Rio de Janeiro como historiadora; em 2003 integrou o Departamento de Pesquisa da Universidade Estácio de Sá.

Bibliografia:

CARDOSO, Elisabeth Dezouzart e outros: “História dos Bairros: Tijuca”. Rio: João Fortes Engenharia e Index Editora, 1984.
CARTAS DE PEDRO I À MARQUESA DOS SANTOS/ notas de Alberto Rangel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000
MAIA, Antonio: “Tijuca apontamentos para a história do aristocrático bairro”. Rio: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1984.
OLIVEIRA, Lili Rose Cruz e AGUIAR, Nelson. Tijuca de Rua em Rua. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2004.
OLIVEIRA, Lili Rose. 100 Anos da Praça Saens Peña Rio de janeiro: HP Comunicação Editora, 2011