19 idéias para tornar um pouco mais esperançosamente integral o que chamamos de educação integral.

Por Carlos Rodrigues Brandão

Carlos Brandão no encontro Fios de Prosa, no Tear/ Fevereiro de 2015

Recado para quem vá ler este escrito
Este escrito, assim como todos os desta série, é um antigo ou um novo texto que escrevi. Em alguns casos pode ser o capítulo de um livro ainda vigente ou já esgotado. Em outros, um artigo de revista de novos ou velhos tempos. Em outros casos, um escrito nunca publicado e escrito para ser dialogado em encontros, simpósios e equivalentes. Alguns foram revistos e atualizados. Outros não. Alguns têm ao final uma bibliografia completa, ou quase. Em outros ela está ausente. Tal como todos os outros desta série, o propósito deste escrito não é em nada acadêmico. Ele serve a estabelecer diálogos entre pessoas e seu uso é livre, isto é, livremente co-responsável. Ele pode ser utilizado em diferentes situações. Pode ser citado no todo ou em parte. Pode ser incorporado a outros escritos, desde que lembrada a sua fonte.
Quem queira “entrar no texto” seja para torná-lo melhor, ou para co-participar dele está também convidado a tanto. Seremos co-autores/as.Lembro que boa parte de tudo o que escrevi como livros está colocado em LIVRO LIVRE, no site do Rosa dos Ventos. Lá estão quase todos os meus livros de antropologia, de educação e de literatura que, livres de direitos editoriais, podem por igual serem livremente acessados, salvos, copiados, etc. No Blog A Partilha da Vida  vários outros escritos meus podem também ser livremente acessados.

respiro astrol 2

1. Podemos descolonizar a educação da pedagogia e, mais ainda, do pedagogismo isento de diálogo com outras maneiras de sentir, pensar e praticar a vocação de ensinar- e- aprender. Podemos ousar o não permitir que a educação seja pensada apenas como algo que existe entre a ciência-e-a-técnica. Podemos relativizar o seu teor dominante de uma tardia e limitante escolha centrada no didático-científico – aquilo que se resolve no “prosaico”, lembrado por Edgar Morin – em nome de uma vocação equilibradamente também dialógico-poética. Ou mesmo “poiética”, como em Humberto Maturana.Podemos aprender a Poeitizar a educação e poetizar a escola.

2. Ousemos des-apressar o aprender. Saibamos retardar o que-saber-para-fazer em nome do como-viver-para-ser. Dar mais e melhor tempo a lentas e humanizadas progressões escolares, e abrir mais momentos ao poético por oposição ao prosaico; ao devaneio por oposição ao conceitual (como em Gaston Bachelard), ao amorosamente dialógico, por oposição ao egoisticamente monológico, ao poiético = a construção da poesia-de-si-mesmo na pessoa de cada aluna/o, por oposição ao pragmático = a mera instrução do indivíduo para produzir apenas… coisas.

“redescobrir como retomar a aula em que a fala de parte a parte constrói o seu próprio saber, ao invés de reduzir-se a um repetitivo empilhamento de informações prontas e não aberta à criação do debate e da descoberta do sabor do saber no acontecer do ensinar e aprender”

3. Podemos recriar o direito ao improviso, ao imprevisível, ao criativo, remando contra o pré-estabelecido, o previsto, o previsível. Conspirar contra a mecanização do ensinar, como aquela que se estabelece em cima de programas de curso rigidamente pré-montados e empacotados. Saibamos retomar as aulas e diálogos criados a partir de roteiros fluidos a serem construídos no próprio momento da aula ou da fala. Ousemos relativizar o primado crescente das aulas data-show e aprender a utilizar criativamente os aportes da informática, em nome de um saber criativo e elaborado no momento do ensinar-aprender. Um com-saber com pleno direito ao improviso de parte do professor e de alunos. Assim, poderemos redescobrir como retomar a aula em que a fala de parte a parte constrói o seu próprio saber, ao invés de reduzir-se a um repetitivo empilhamento de informações prontas e não aberta à criação do debate e da descoberta do sabor do saber no acontecer do ensinar e aprender.

4. Tenhamos a coragem de abolir ou reduzir o quanto for possível as competições e as concorrências. A escola não é um estádio e nem a educação é uma olimpíada. Colocar muito em segundo plano, ou mesmo eliminar as competições e, sobretudo, as “ranquicisações”, em nome de uma escola de partilhas e de construções coletivas, solidárias e não comparáveis em termos de escalas e hierarquias. Saibamos relativizar a individualização competitiva, em favor de uma individuação cooperativa. Saibamos abolir ou reduzir as premiações excludentes (nos pódios sempre só cabem três), os “quadros de honra”, os “primeiros colocados” e o silêncio a respeito de “todos os outros”. Quando será que a escola e a educação irão atribuir valores e prêmios para os mais solidários, os mais “abertos-ao-outro”, os mais cooperativos e capazes de dialogar em e entre equipes, em lugar dos solitários obcecados por seu exclusivo desempenho individual e por suas medalhas? Afinal, queremos produzir homens-máquinas para os poderes do mercado, ou pessoas humanas para a construção de uma sociedade generosamente humanizada?

“A escola não é um estádio e nem a educação é uma olimpíada”

5. Podemos repensar a pedagogia como a arte de criar, gerar, partilhar e fazer circular saberes. Como o território do encontro aberto a desafiar pessoas e grupos de pessoas a aprender e integrar conhecimentos, e de acolher informações apenas de forma complementar e acessória à construção pessoal e coletiva de saberes. Não esqueçamos que aprender é criar saberes junto-com-o-meu-outro, para depois interiorizar a minha parte pessoal de um com-saber solidariamente construído. Retomar a trajetória que vai da informação (o que se adquire e acumula manual e instrumentalmente sem reflexão e partilha) ao conhecimento (aquilo que interioriza através de diálogos reflexivos e críticos com outros) e chega finalmente ao saber (aquilo que se cria apenas em situações de partilha e que flui entre todos, sem ser uma posse de ninguém).

6. Portanto, ousemos re-centrar o processo do ensino-aprendizagem no “acontecer do aprender”, recolocá-lo no interior da vida de equipes e na experiência pedagógica do criar-entre-nós. Transformar a sala-de-aulas e a turma-de alunos em uma comunidade aprendente. Uma pequena e viva comunidade centrada no trabalho da pessoa-com-os-outros, e não no esforço egoísta do indivíduo-contra-os-outros, à margem da equipe, da turma, da pequena e ativa comunidade que sabe o que aprende… e que aprende o que constrói.

7. Podemos re-vivenciar a experiência do aprender como um trabalho realizado também sobre a reminiscência, sobre a lembrança do vivo e do vivido, sobre a memória do partilhado em interação com o que está acontecendo aqui-e-agora. Saibamos trabalhar para que o foco do ensinar-aprender parta não apenas de um concreto-abstrato dominado pelo professor e subordinado à rotina de um programa”. Mas algo vivo e rememorado em e entre situações pessoais e interativas vividas e pensadas pelos alunos desde a experiência de momentos-foco de vidas cotidianas. Se isto tem sido experimentado há muitos anos com terapias que pretendem partir do e atingir o âmago da vida interior de pessoas, porque não fazer o mesmo com a educação? Pois estamos pensando aqui em uma educação que somente pode pretender ser integral e transdisciplinar, se tomar como seu ponto de partida o núcleo pessoal-e-dialogável de cada um e de todos os seus participantes. Mas, para tanto, é preciso relembrar que qualquer que seja a pessoa-aluno que tenho diante de mim, estou frente a uma fonte pessoal, única, sagrada e irrepetível de suas próprias vivências, experiências, sentidos, sensibilidades e saberes. Compreendido de dentro para fora e a partir de si mesmo, o “pior de meus alunos” é um sábio-de-si-mesmo . 

“Estamos pensando aqui em uma educação que somente pode pretender ser integral e transdisciplinar, se tomar como seu ponto de partida o núcleo pessoal-e-dialogável de cada um e de todos os seus participantes”

8. Sem temor algum saibamos recolocar o foco da educação naquilo que até a algum tempo atrás costumávamos chamar de “espiritualidade”, de “vida interior”; de “busca pessoal e interativa do bem, do belo e do verdadeiro. Por que será que estes profundos e ancestrais valores da trajetória da humanidade no Planeta Terra, parecem hoje algo “do passado” em tempos em que a eficácia do momento, a superficialidade competente e a descartabilidade de tudo e de todos parece a cada momento colonizar mais espaços de nossa própria… vida interior?

9. Saibamos relativizar muito a tendência crescente a funcionalizar a educação para capacitar o competente-e-produtivo, em nome de nossa vocação de educadores, centrada no re-humanizar a educação para formar o consciente-criativo. Ousemos recolocar no foco da educação o diálogo constante da comunidade aprendente com não apenas a informação útil e disponível – como o “inglês funcional”, para aprender a falar com máquinas e com empresários – em nome de um saber transbordante e desafiador – como aprender inglês para ler Shakespeare e Robert Frost. Podemos dedicar menos tempo a lidar com fragmentos de poesia-instrumental para ensinar gramática-funcional a estudantes apressados, e dedicar mais tempo-vivo-na- escola para trabalhar gramáticas-profundas e filosofias das idéias, para criar leitores atentos e fervorosos de Cecília Meireles, de Clarice Lispector, de Marilena Chaui e de João Guimarães Rosa.

10. Aprendamos a realizar de fato, e não apenas nas teorias dos simpósios e congressos sobre transdisciplinaridade, interações e integrações de igual para igual entre a arte, a filosofia, a espiritualidade e a ciência. Saibamos criar currículos em que a música recobre o seu lugar na sala de aula e dialogue por igual com a matemática; a dança dance com a geografia e ambas criem territórios de vida e, não, de informações sobre a vida. Deixar que a poesia seja um dos motivos de se ensinar “língua pátria”. Se necessário, podemos aprender com Leonardo da Vinci, Gaston Bachelard, Roland Barthes, Antônio Cândido, Heitor Villa-Lobos, que a arte não é um saber ocioso destinado às horas de recreio, ou de atividades para-escolares. Ela é um outro saber. Ela poderá vir-a-ser um saber tão humanamente profundo quanto o conhecimento das ciências. Ciências que quanto mais se fazem densas e desafiadoras, tanto mais se aproximam do mistério, da filosofia e da arte.

“Deixar que a poesia seja um dos motivos de se ensinar ‘língua pátria'”

11. Ousemos levar as integrações-interações entre saberes para além do meramente “transdisciplinar”. Assim abrir-se ao todo e ao complexo da “sabedoria do mundo”. Levar a sério a proposta (sempre incipiente, sempre aos pedaços) de uma educação multiculturalista a um ponto limite. A um lugar de efetiva fronteira-de-diálogo entre os saberes-de-ciência (ocidental e acadêmica) e os saberes-outros. Todos os outros saberes. Podemos realizar isto a partir do pressuposto de qualquer outro saber vindo de qualquer outra cultura é não tanto uma “forma curiosa e interessante de pensar e viver” ele é em-si-mesmo e para-nós uma outra fonte original, interativa e complexa de lição do mundo e da vida. Outros saberes, outras sensibilidades, outras criações cultuais de compreensão do humano, da vida e do mundo em que a vivemos, apenas diferentes, mas em nada desigualmente “menores” do que o que culturas eruditas do Ocidente produziram. Os saberes de Cambridge e Nova York ameaçam mais a nossa felicidade e a nossa sobrevivência do que o dos Aymaras e os Guarani.

12. A partir do aporte de saberes de tradições “de longe”, aprendamos a aquietar um tanto mais a educação, a serenar a pedagogia e a pausar a didática. Talvez o agito das salas de aula e a violência da escolas diminua, com a inclusão de momentos de “nada fazer” na escola. Momentos de criativa serenidade em que é dado a tudo e a todos o direito de estar-na-sua, serenamente meditando ou aprendendo com aulas de Tai-Chi. Aulas em que ninguém compete com ninguém, mas cada uma se harmoniza em conjunto com outros. Trazer para o centro da escola práticas destinadas a tranqüilizar o espírito e a serenar o corpo de dentro para fora. Será que boa parte do que torna nossas alunas “agressivas” e as nossas escolas “violentas”, não virá do estarmos trazendo para dentro da escola a mesma lógica, a mesma pressa, a mesma competitividade exaustiva, a mesma ética (ou pseudo-ética) e a mesma sensibilidade do competitivo-competente de um mundo-de-mercado que no coloniza e que dia-a-dia ameaça colonizar todas as esferas entre a sociedade e a educação, entre a educação e a escola, entre a escola e cada uma de suas habitantes? Estejamos atentos a não transformar uma educação integral, algo que ao invés de integrar pessoas criativas, desintegre ainda mais indivíduos agitados através de um acúmulo “em tempo integral” de atividades sucessivas, apressadas e competitivas.

“Talvez o agito das salas de aula e a violência da escolas diminua, com a inclusão de momentos de “nada fazer” na escola”

13.  No seu sentido mais radicalmente humano e, por isto mesmo, mais transformador, saibamos recolocar a política no centro do que se vive na escola. Em primeiro lugar, política com o sentido de cuidado da “polis”. Quando falamos em educação cidadã, ela é isto: o aprendizado vivido e vivenciado da co-responsabilidade pela gestão coletiva e amplamente participativa nos destinos de grupos humanos locais, de comunidades, da cidade, da nação e de todo o mundo.
Em segundo lugar, política como partilha do processo de transformar pessoas – o “conscientizar”, em Paulo Freire – para criar, também a partir da escola e desde a infância, seres humanos com um sentimento e um saber de liberdade e de autonomia, logo, de partilha, participação e co-gestão ativa e solidária de processos de transformação de nossos mundos de vida e de destino.
Lembremos: a educação não muda o mundo; a educação muda pessoas; pessoas mudam o mundo.

14.  Assim, retomemos a ideia do destinar uma educação humanista e radicalmente integral, à vocação de formar sujeitos conscientes-cooperativos para a transformação humanizadora da sociedade e, não, sujeitos competentes-competitivos para a reprodução da lógica e do poder do mercado do capital.
Uma educação para além do meramente “inclusivo”. Uma educação voltada com prioridade ainda e sempre (ou até quando for preciso) ao serviço aos “deserdados da Terra e da terra”. Uma educação esquiva aos poderosos e voltada aos pobres, aos excluídos, ao povo e nossos povos, enfim. que o nosso labor como educador esteja preferencialmente dirigido.

15. Aprendamos a fazer retornar a escola e a educação a práticas do cotidiano que em suas diferentes escalas remam contra os saberes, valores e poderes do capitalismo e do mero mundo dos negócios. Associar a educação integral a processos conduzidos por movimentos sociais e populares de frentes de luta contra a desigualdade, a exclusão, a acumulação de riquezas, à exploração do trabalho e da pessoa que trabalha.
Ousemos abrir a escola, primeiro para os seus “territórios-do-entorno”, aquilo que gosto de chamar de comunidade de acolhida, o lugar mais socio-cultural do que meramente geográfico em que a escola está inserida. Depois, saibamos acolher em seu interior e dialogar com antigas em novas modalidade de viver-a-vida como a economia solidária, a simplicidade voluntária, as frentes populares de ação social.

16. Saibamos ousar dar saltos e saltar voos para além-de. E saibamos começar esta ousadia poético-pedagógica por desvestir uma educação integral das máscaras em que ela aparece como “escolas em que os alunos ficam o dia inteiro dentro delas”. Ou como algo que apenas de leve humaniza e integra valores e fatores de uma educação dominada pela lógica do mundo dos negócios e destinada a reproduzir e reforçar o poder do capitalismo.
Desde as práticas do cotidiano, pensar os termos concretos e a prática de educações libertárias, de uma educação em busca de construção de si mesma como lugar de criação de formas novas e renovadoras de solidariedade interativa e de um socialismo de fato humanista e humanizador.

respiro astrol 1

17.  Saibamos retomar a educação a uma vocação de fato mais culturalmente “natural”. Em um tempo em que as telas e as conexões eletrônicas parecem deslocar a realidade do mundo da vida do vivencial para o virtual, ousemos aprender a retomar os caminhos de genuínas experiências-de-partilha-da-natureza. Talvez tenha chegado o momento de pensarmos – entre tantas teóricas inovações didáticas – se a escola não deveria voltar-se mais a ser parecida com um “acampamento de escoteiros” do que com um “laboratório de internautas”.

18. Enfim lembremos com Sartre que “uma coisa é o que fizeram de nós. E outra coisa é o que fazemos do que fizeram de nós…“. Partir da idéia de que na verdade, se quisermos, somos e seremos nós e os nossos educandos-herdeiros aqueles a quem cabe a continuidade e a densidade do trabalho de transformarmos as nossas vidas, os nossos destinos e os mundos cotidianos e de história, em que partilhamos nossas vidas e destinos.

19. Lembremos, enfim, que somente haverá “um outro mundo possível”, quando, passo a passo, existir em nós e entre nós, um outro ser humano possível. E este outro ser humano mais humano e humanizador somente existirá quando soubermos criar uma outra educação possível, poeticamente humana e humanamente integral. E todos estes “possíveis” dependem de nós mesmos e de nós mesmas, muito mais do que nós próprios/as imaginamos.

Começado na cidade de Buritizeiro na beira do Rio São Francisco em um dezembro de grandes chuvas em 2011.
Revisto durante o FORUM SOCIAL TEMÁTICO em Porto Alegre,em janeiro entre calor e chuva.
Revisto de novo durante o IV Seminário Nacional de Educação Integral: contribuições do Programa Mais Educação, realizado em Brasília, entre 29 e 31 de maio de 2012, com noite de chuva e dia de sol.

 

Diálogos Sustentáveis

 

 

 

Link desse post: https://institutotear.org.br/4172

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *