Com três filhos desescolarizados , Ana fala de sua experiência e da busca constante por tirar a escola de dentro de si.
Por Carolina Bergier
Já estive com Ana Thomaz algumas vezes. Em todas elas, algo intenso se move dentro de mim. Um convite para deixar o ter e assumir o ser.
Ana Thomaz é. Qualquer coisa que complete a frase anterior a reduziria a algo que possivelmente ela já não está mais. Pode-se dizer que, até hoje, Ana foi uma pessoa em busca de coerência, que percebeu na a infância os adultos falando o que suas ações desdiziam. Já adulta, fez um acordo consigo mesma no qual tentaria evitar a incorência e que pensar, sentir e fazer pertenceriam à mesma linguagem.
Pode-se dizer também que Ana está em constante criação de si, libertando-se dos sistemas já preestabelecidos. Desescolarizou seus três filhos e mais recentemente uma escola, foi educadora e professora da técnica Alexander. Em comum a tudo que ela já foi e é, o trabalho diário para ser um ser livre. E um ser livre, segundo ela, é aquele que não tem escolha. “As minhas relações me dão o caminho. Eu não tenho escolha para decidir o que fazer com minhas filhas fora da escola. Me relaciono com elas e fica claro o que precisa ser feito. E é isso que faço”, diz.
Recentemente, uma doença a convidou para a auto reconstrução mais uma vez. Hoje, ela vive o Projeto Amalaya onde mora, em Piracaia, interior de São Paulo. Lá acontecem encontros semanais abertos e gratuitos, bem como acampamentos para convívio e experimentações. Fora de lá, segue oferecendo vivências e workshops para a libertação do ser. Participará da próxima edição do Semente, percurso em educação com significado da Casa Sou.l. Aqui, uma entrevista exclusiva que a Ana concedeu pra mim.
Ana, para você, o que significa desescolarização?
Quando meu filho me disse que queria sair da escola, pedi a ele um ano para que eu me preparasse. Porque, se eu ia tirá-lo da escola, eu precisava tirar a escola de dentro de mim. Como alguém que se educou dentro da escola, como eu, iria acreditar e sentir verdadeiramente que a escolaridade não precisa fazer parte da vida? Eu não estou falando da escola, mas da escolaridade, que diz que precisamos adquirir conhecimento de uma maneira determinada. Passei um ano liberando a escolaridade em mim e só então ficou claro que eu precisava olhar verdadeiramente pra ele e não para o que eu achava que ele precisava. Então, desescolarizá-lo não foi tirá-lo da escola, mas tirar a escola de mim.
E quais são esses valores chamados escolarizantes?
São vários: a ideia que o conhecimento vem de fora, que se você aprender determinada coisa você vai ser alguém, aprender a ter opinião e senso crítico. Qualquer criança de dois anos tem opinião. O que a escola faz não é ensinar a ter opinião nem senso crítico, e sim criar representantes, fazer a criança ter a opinião daquela instituição. Também são nefastos na escolarização o julgamento, a comparação, a competição, a classificação. Você está sempre a mercê do que está fora de você. Digamos que estou bem e alguém me diz que fui mal na prova. E aí aquele meu estado de paz desaparece e eu fico triste. É tão cotidiano e tão absurdo que nossos humores variem de acordo com o que vem de fora. Eu acabo ficando triste e alegre por distração de quem realmente sou. Eu me desvio.
Como esses valores escolarizantes impactam as crianças e consequentemente os adultos e a sociedade?
A criança demora um pouco, mas acaba aprendendo que se falar algo que agrada a alguém, essa pessoa a trata bem. É aí que ela aprende a brincar com as máscaras. Ela chega para a mãe chorando e fala “eu quero que você me dê aquilo!” e a mãe logo mostra o código: “chorando eu não vou te dar nada.” Aí a criança veste uma máscara e para de chorar para ter o que deseja. Em algum momento, a criança passa a acreditar que a mãe vai gostar mais dela com a máscara, a máscara cola e a gente passa a criar várias delas: pra se relacionar, pra trabalhar, pra conviver. Então entramos no ter e nos separamos do ser que sabe que o mais importante é a experiência em si e não a sustentação da estrutura social. Pra mim, o maior dos estragos é a condicionalidade.
O que é essa tal de condicionalidade?
É quando a gente começa a achar que nossa vida não é incondicional, que ela depende do que você fizer, de como te reconhecerem, de quanto te pagarem, Tudo isso pra você ter um valor. Isso gera uma crise de utilidade. Não tem coisa mais absurda para a vida do que alguém nascer pra ser útil pro mundo. Uma bananeira não nasce e pensa ‘vou ser útil’. Ela nasce e, por efeito, gera frutos. Pra quem gosta de banana ela tem utilidade, pra quem não gosta, não tem. Mas nem por isso ela deixa de ter valor. Na prática, isso é alguém que se reduz a ter, e não mais aquele que se autoconstrói em relação com o outro. É alguém que tem conhecimento, tem facilidades e dificuldades, carência, filhos, amor pra dar, trabalho. Deixo de ser pra ter e aí tudo perde o sentido. Essa questão da condicionalidade resume bem a problemática geral da humanidade.
Se crescemos dentro de um sistema educacional que incita esses valores, como fazer diferente?
Se auto educando em relação, me relacionando com os meus sentimentos. Por exemplo, quando eu começo a reconhecer que não é você que é irritante nem eu que sou irritada, mas que tem irritação em mim, tem uma máscara de irritabilidade. Ao reconhece-la, a irritação se dissolve, pois há uma força em nós que não quer se prender a nenhum ter. Surge a resposta de liberação da irritação e já não sou mais aquela pessoa. Aí, posso me relacionar a partir do ser. Então eu percebo, reconheço e libero aquela emoção para que ela não fique estagnada.
Porque mimamos e nos irritamos com as crianças?
A gente se irrita por imaturidade e mima por culpa de ser se irritado. A criancice do adulto vai se irritar e vai mimar porque é carente, tem culpa e não reconhece a criança como outro ser. Temos pouca responsabilidade por nossas emoções. Toda vez que sentimos algo buscamos um culpado por sentirmos aquilo, mesmo que o culpado sejamos nós mesmos. Mas não há culpados, há estagnação, que é toda emoção que consigo dar nome. A raiva, por exemplo, quando estagnada, gera destruição. Quando essa força está liberada, ela gera uma ação. Se eu chego em casa e está tudo bagunçado, fico com raiva, procuro culpados, reclamo e não faço nada além de sentir raiva. Agora, seu eu chego em casa e não me identifico com a raiva, aquilo vai me dando ação, criatividade. Ponho uma música e arrumo a casa toda a partir daquele sentimento.
Você costuma dizer que todos somos educadores. Se nosso papel como educadores não é ensinar, qual é esse papel?
Todos nós temos a obrigação de sermos auto educadores, porque ninguém tem acesso a nós como nós mesmos. É responsabilidade minha como recebo aquilo que ouço, percebo e aprendo. Quando me auto educo, se abre a relação da verdadeira educação, pois estou não estagnado nas minhas emoções. Quando vejo o outro com emoções estagnadas, consigo ajudá-lo, pois já passei por isso e estou na liberação. Se não for assim estou moldando, formatando, fazendo o outro se convencer do que o que eu penso é mais importante do que o que ele faz ou faria. Podemos sim dar contornos e limites. Mas isso de uma maneira auto educada, que não vem como uma limitação para o outro, porque não vem do medo, da raiva, de uma emoção estagnada. Vem da liberação, o que faz com que não percamos a autoridade, mas sim o autoritarismo.
Você acredita na instituição escola?
Não, acho totalmente desnecessária. Mas acredito em um lugar de encontro onde possamos aprender, que pode ser a padaria para quem quer aprender a fazer pão, uma marcenaria para aprender a mexer com madeira, um físico quântico para compartilhar o que quiserem aprender. Isso é uma comunidade de aprendizagem, um lugar onde existe acesso pedagógico, artístico, manual, prático. E dentro desse acesso livre, o aprendiz vai poder construir sua maneira de fazer, e não repetir a maneira como é feito há séculos. O que funciona há séculos pode seguir enquanto técnica, mas ele pode também criar em cima.
Você fala muito sobre a importância de estarmos em contato com nossa potência. O que isso significa?
Somos o ser da potência. Estar na potência hoje é desinvestir tudo que te tira dela, o que te distrai, todos os “teres”. Você vai ter um monte de coisa sendo, mas por efeito. Você vai ter uma profissão, dinheiro, relacionamentos. Tudo isso por efeito do seu ser. O ter entra a serviço do ser. Para estar na potência não posso me distrair dela com os “deveria ser”, os “tem que”. Mas o meu ser diz que eu tenho que ser mãe, por um momento na minha vida eu tive que ser professora. Eu não tinha escolha, meu ser apontava para isso. Mas não uma mãe carinhosa, ou uma mãe disciplinadora. Tenho só que ser mãe e a relação vai me mostrando o que fazer enquanto mãe.
Você acredita em alguma estratégia compartilhável pra que possamos sair da insustentabilidade onde estamos?
Nada vai garantir, porque são só estratégias. Toda técnica pode ser alienante ou libertadora. Então, a estratégia em si não garante nada, porque ela pode ter sido muito libertadora pra mim e totalmente aprisionadora pra você. Se você passa a ter a técnica, se distancia do ser. Então não tem estratégia. Tem o despertar do ser de cada um. E cada vez que alguém de desperta nesse ser, ele irradia isso. Então qualquer vibração que não seja do ser não se sustenta. Quem está rodeado de um ser precisa ser também. A melhor estratégia é investir no ser e desinvestir no ter. Não tem erro.
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