Os caminhos essenciais da escrita passam pela leitura do mundo

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Por Domingo Gonzalez Cruz

1 – Imagens e palavras.

As histórias não contadas constituem a essência do homem criador de qualquer tipo de produção textual. A leitura do mundo desperta imagens viajantes dentro do ser humano. A palavra articulada vem do silêncio e se faz corpo vivo dos saberes humanos.

Às vezes, um jovem diz:

– Sou péssimo escrevendo. O que você me recomenda? Conhece uma boa gramática?

Na verdade, se ele não conseguiu ler o que não estava entendendo até os dez anos de idade, depois, será mais difícil. Talvez, um professor de literatura possa ajudá-lo na autoestima abalada. Eu disse, talvez.

A leitura do mundo se aprende lendo, não só nos livros. O contexto cultural é importante na formação do leitor. A inteligência linguística (Howard Gardner) poderá superar essa dificuldade. Mas não é todo dia que nasce um Machado de Assis.

Me aproprio das palavras multifacetadas para associá-las às verdades que elas escondem. Se me encanto, posso surpreender palavras, sem medo de errar. Quando conto uma história, leio as imagens que as palavras dessa história me oferecem. E a palavra viva é o centro transmissor dos conhecimentos, sentimentos e emoções humanas.

Imagens são mais imediatas nos desenhos, nas pinturas das crianças (Augusto Rodrigues). O encadeamento expressivo das palavras é posterior às simbologias das artes plásticas, enquanto linguagem expressiva, na primeira infância (para inteligências dentro da média).

As plasticidades imagísticas das palavras elaboram estruturas significativas e visuais complexas, criando outras secundárias, terciárias, etc. Exercitar essa habilidade é um grande desafio no universo linguístico. Algumas crianças e adolescentes conseguem com grande facilidade, mas o que acontece? Elas têm a inteligência linguística muito avançada para a idade cronológica. Superdotação? É uma possibilidade. Equacionam as palavras com alto poder de criatividade. O que se pode denominar de alta habilidade.

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Arthur Rimbaud parou de escrever aos 20 anos de idade. Um caso de excelência, raro, em matéria de poesia. E modificou as estruturas literárias de sua época, quando estava com 16, 18 anos de idade. Já sei que isso corresponde à procura de uma agulha no palheiro. Mas talentos devem ser estimulados. Eles ultrapassam seu tempo existencial. Se o escritor tem o que dizer, os estímulos serão essenciais.

Se conto uma história ou escrevo um poema com palavras incomuns, isso agita o cérebro do leitor, pois a semântica complexa acelera lembranças autobiográficas, que redimensionam sentimentos, emoções e vivências. O que o artista da palavra diz, e do jeito que diz, agita novas leituras.

Os temas que inquietaram Jung, sobre o destino do homem na Terra, são abordados na literatura universal e também na infanto-juvenil. Quem sintetiza as dimensões desse destino humano na memória do planeta é o arquétipo do herói:

Incorpora as mais poderosas aspirações e revela a maneira pela qual elas são idealmente compreendidas e realizadas. Representa a vontade e a capacidade de procurar e suportar repetidas transformações em busca da totalidade ou de significação. Implica não só a capacidade de resistir, mas também a de sustentar conscientemente a tremenda tensão entre os opostos. (Grinberg, 2003)

Ele reside nos livros da biblioteca infantil e juvenil. A paixão de ler fará com que o leitor se apegue as aventuras enfrentadas pelo herói, o que poderá ajudá-lo a rever valores, acelerando seu potencial criativo:

Do ponto de vista psicológico, a imagem do herói deve ser considerada idêntica ao ego propriamente dito. Trata-se, antes, do meio simbólico pelo qual o ego se separa dos arquétipos evocados pelas imagens dos pais na sua primeira infância”. (Henderson, 1977.)

O preparo contínuo de um narrador, seja prosador ou poeta, carece de exercícios constantes, nas oficinas literárias destinadas à escrita criativa.

As práticas de escrita criativa desbloqueiam dificuldades expressivas.

A inteligência linguística exige muita criatividade e imaginação, sintonias culturais complexas também. O corte linguístico é o ápice dessa inteligência, bem representada por poetas, oradores e advogados.

Os poetas renovam a língua, a literatura, formando visões de mundo inovadoras.

Os oradores (políticos) criam na narrativa oral, argumentações que não permitem indecisões no que dizem, exercitam dúvidas com veemência, para atingir verdades irreversíveis.

Os advogados utilizam a retórica para questionar acusações e direitos evitando injustiças.

Fazer e Sustentar-se

  1. Trajeto Tearteiro.

Comecei muito cedo a lidar com acervos de bibliotecas e atividades criativas. Fui parar nos porões da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), aos 18 anos de idade. Enquanto limpava livros, lia os discursos que Rui Barbosa proferiu, debates políticos e textos literários (obras completas). No decorrer de algumas décadas, acabei escrevendo sobre a vida e a obra desse grande brasileiro: “A Casa de Rui cheia de encantos” (poemas), e “Assombração na Casa de Rui Barbosa” (romance juvenil) em parceria com Eni Valentin (trabalhou no setor que edita as obras de Rui Barbosa).

Estudei biblioteconomia, me especializei em Documentação Científica, ajudei a classificar os 35.000 volumes da biblioteca particular de Rui Barbosa, mas meu sonho principal estava voltado para o que o patrono da casa apreciava muito. Ler para crianças. Ele contava histórias para os netos.

Eu sonhava com a criação de uma biblioteca viva para as crianças do bairro de Botafogo (RJ). E o sonho se tornou realidade. A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil criou a Biblioteca Infantil Maria Mazzetti (BIMM) em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa (1979).

Cansei de ver a escritora Marina Quintanilha circulando pelos jardins da Casa para contar histórias “de livro” e de “boca”. Depois, fui designado para dar continuidade às atividades criativas de estímulo à leitura. E fui me especializar na Escolinha de Arte do Brasil fundada por Augusto Rodrigues. Lecionei Leitura e Criação de Texto, na Escolinha e escrevi o livro “Recordações e Encantos da Rua Cosme Velho”. Augusto Rodrigues virou personagem: o Imperador do Largo do Boticário.

Surgiu uma pergunta. Quem foi Maria Mazzetti? Por sorte, Gilda Meirelles, poeta e educadora, levava seus filhos até a BIMM. Ela foi amiga de Maria Mazzetti.

Após longa conversa fui à luta. Entrevistei Aladyr Santos Lopes, Maria Clara Machado, Virgínia Valli, entre outras pessoas que conviveram ou trabalharam com a educadora incansável.

Essas andanças nos fluxos da vida, me levaram até o Tear – Núcleo de Atividades Criativas. E entrevistei Denise Mendonça. Encantamento puro. A Arte/Educação abria portas novidadeiras, e eu entrei expandindo minha criatividade. Escrevi o livro “A história de Maria Mazzetti” (Edições Casa de Rui Barbosa).

Com Denise, aprendi muitas coisas e ela assegura que aprendeu com Maria Mazzetti. Que foi que eu aprendi no Tear? Vejamos:

Com Maria aprendi tantas coisas… uma delas a toda hora estou resgatando na minha vida e constitui uma das principais razões de eu ter criado o Tear: o ato mágico da descoberta e da transformação. Você como mentor de suas próprias ideias, através da linguagem poética, sonora, plástica, enfim, para ter acesso a seu próprio universo expressivo e SER único e SER inteiro – a grande possibilidade que cada um de nós tem de ser, de fato, um mago.

Esta forma de conduzir o pensamento e a vida está muito presente em sua poesia ao lidar com o non sense, o imprevisível e o imaginário de maneira extraordinária. E lidando com o não-convencional, com a informalidade, amplia-se o sentido, a magia”. (Cruz. 2004.)

E fui dar aula dentro do Tear, atuando principalmente na biblioteca infantil, com atividades criativas. Eu estava impregnado pelos sonhos realistas da bibliotecária e escritora francesa, Geneviève Patte. Percebi que a biblioteca infantil deve ser ALEGRE, contando para isso, cada vez mais, com uma oficina de criação e recursos da informática.

Ainda lembro das reuniões com a equipe do atual Instituto Tear. Reuniões de um grupo familiar altamente profissional, sempre pensando em construir um mundo mais humanizado para crianças e adolescentes.

Vi muitos meninos e meninas realizando seus sonhos, após saírem do Tear. O processo afetivo dessas pessoas é muito rico. São profissionais cheios de ideias criativas. Coisas que eles aprenderam a semear nas atividades tearteiras, naqueles quintais e salas mágicas.

A biblioteca Infantil  guardava livros, e também outros objetos (documentos não gráficos). Exemplo: relógio antigo, carreteis de linha, baú de fantasias, bolas de soprar, lunetas, mãos dadas, máscaras, caleidoscópio, efeitos de luz e sombra, gravuras, tintas, panos coloridos, primeiras histórias, lágrimas de fadas, sangue de Cleópatra apaixonada, plantas, etc.

A escritora Ana Maria Machado (Academia Brasileira de Letras) foi visitar o Tear. Entrou na biblioteca infantil e ficou extasiada. De repente, pegou um documento não gráfico e começou a inventar uma história de “boca”. E pegou mais outro para esticar a história. E outro… E outro… Entrou do delírio do contador de histórias, criando o êxtase literário.

Em outra ocasião, a biblioteca amanheceu trancada. As crianças bateram na porta. E se ouviu alguém falando uma língua estranha. Era um índio/bibliotecário. Ele abriu a porta para conversar sobre seu acervo especial: arco e flecha, urucum, penas, cipós, etc.

Assim será o Instituto Tear (Ponto de Cultura), quem sabe, por mais 30 anos, com suas atividades criativas e sonhos “mazzetianos”, para desenvolver Programas de educação ambiental e Literatura, Círculo da Terra (Projeto de Arte/Educação ambiental), Tear de Histórias (Projeto de Arte/Educação e Mediação de Leitura), entre outras produções educativas e culturais.

A inteligência naturalista será cada vez mais necessária para preservar nosso planeta. O ateliê temático é muito rico, dentro do Tear: seres do quintal, germinação, água, solo, árvores, diversidade.

Um dia desejei saber quem foi a escritora e educadora Maria Mazzetti. Atendi o chamado e não me arrependo. Passei a entender o que é educar para viver prazerosamente.

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Referências bibliográficas:

Henderson, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno. In: Jung, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

Gonzalez Cruz, Domingo. A biblioterapia na educação. Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes, 2004.

Grinberg, Luiz Paulo. Jung: o homem criativo. São Paulo: FTD, 2003.

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