Pesquisa de Jana Tabak sobre crianças que convivem entre conflitos armados
Mapeada de Papo de Pracinha
Jana Tabak é brasileira, mãe de um menino de um ano e vive no Rio de Janeiro. Graduada em Jornalismo com mestrado e doutorado em Relações Internacionais, interessou-se pelo tema depois de ler a autobiografia de um ex-menino soldado, Ishmael Beah. Sensibilizada com sua história, Jana quis saber mais e, principalmente, compreender como a sociedade internacional respondia a essa emergência, como era a vida dessas crianças após o fim da guerra. Nessa busca, estranhou a proposta da Organização das Nações Unidas (ONU) de tentar transformar crianças-soldado em crianças “normais”. Daí, seguiu para o Doutorado na PUC (Departamento de Relações Internacionais), incluíndo um período de seis meses na Universidade de Rutgers, nos EUA, no Departamento de Estudos da Infância, com as perguntas: “o que é uma criança normal?” e “quem são as crianças-soldado em relação à criança normal?” Ela conta aqui suas reflexões e compartilha suas angústias e questionamentos diante das experiências das crianças em situação de conflito armado.
Quem são as crianças soldado?
Primeiramente, é importante destacar que desde 1997 há um movimento internacional de proteção da infância, liderado pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), que defende o uso da expressão “crianças associadas às forças armadas ou grupos armados” em detrimento de “crianças-soldado”. Isto porque o termo “criança soldado” limita o grupo à criança combatente, excluindo, assim, as diversas experiências e atividades desempenhadas pelas crianças enquanto parte dos grupos ou forças armadas, como espião, mensageiro, cozinheiro, escravo sexual etc. Assim, segundo as normas internacionais, a criança associada às forças armadas ou grupos armados é todo ser humano até 18 anos que foi recrutado por grupos armados e/ou forças armadas estatais, independentemente de sua atividade estar relacionada ou não ao porte de armas.
Em minha pesquisa, apesar de adotar essa definição ampla, eu mantenho o uso do termo “criança-soldado” e ainda incluo o hífen a fim de ressaltar e também problematizar a contradição quando unimos as palavras “criança” e “soldado”. Isto é, a hifenização da criança-soldado constrói uma ponte entre dois mundos, que supostamente não deveriam se encontrar.
Essa união nos incomoda, entristece, angustia. A minha pergunta é, então, por que esses sentimentos?
Essa configuração de crianças-soldado não acontece em todos os lugares e culturas que vivem em uma situação de guerra.
O antropólogo, David Rosen, estuda a questão das crianças-soldado há bastante tempo e ele costuma afirmar que onde há guerra, há crianças-soldados. Além disso, a partir de um resgate histórico, Rosen argumenta que as crianças-soldado não são um problema contemporâneo. A novidade está justamente no discurso atual (especialmente no pós-Guerra Fria) acerca da criança-soldado enquanto algo essencialmente patológico, que aponta para uma crise – ou emergência – internacional.
Assim, para responder a sua pergunta, sim as crianças participam da guerra em todo o mundo. No entanto, a forma como essas crianças são percebidas varia muito. A UNICEF, por exemplo, percebe essas crianças essencialmente como vitimas de exploração dos adultos. Mas essa percepção não necessariamente condiz com os depoimentos de algumas crianças-soldados. Enfim, é importante considerar as particularidades e complexidades das experiências infantis em contextos de guerra sem estereotipá-las, ou assumir certas experiências enquanto universais, limitando-as à vitimização ou, no extremo oposto, a um comportamento monstruoso.
Partindo de um pressuposto da Sociologia da Infância que permite dizer que as crianças ocupam na sociedade os lugares/espaços sociais que os adultos disponibilizam para elas: quem são os adultos e ou responsáveis que estão diretamente envolvidos com essas crianças?
Quando penso na relação entre as crianças-soldado e os adultos, uma pluralidade enorme de relações emergem, desde a relação da criança com o líder do grupo armado que o recrutou (forçosamente ou não) ao funcionário da UNICEF ou de uma ONG local que tenta reabilitar e garantir o retorno dessa criança à vida civil.
Especificamente sobre a relação entre essas crianças e os adultos dos grupos armados, acho fundamental problematizarmos a premissa de que tal relação é essencialmente de exploração, isto é, que o adulto racional, que pode ser mal, explora a criança inocente e irracional. Apesar do fato de muitas das crianças serem exploradas quando são parte dos grupos armados, vale ressaltar que muitas crianças relatam que se orgulham das atividades desempenhadas, especialmente quando acreditam que lutam por um propósito político. Há também crianças que sobem na hierarquia militar do grupo armado e assumem posição de poder e liderança em relação a outras crianças e adultos. Assim, acredito ser importante, primeiro, não assumir que a criança é essencialmente irracional, incapaz de tomar uma decisão, e, portanto apenas objeto de exploraçãao do adulto, e, segundo, avaliar e buscar compreender a relação entre crianças-soldado e adultos considerando a diversidade e complexidade da mesma.
Sobre o durante e o depois da guerra. O que elas fazem exatamente? E quando acaba a guerra? Como ficam, como se inserem e como vivem essas crianças?
Enquanto parte da guerra, as crianças-soldado desempenham diversas atividades desde combatentes a cozinheiros. Isto é, as crianças bem como os adultos recrutados exercem papéis fundamentais para garantir o bom funcionamento do grupo: são espiões, mensageiros, protegem as bases militares. Além disso, há muitos relatos de crianças – meninos e meninas – que foram explorados sexualmente pelos líderes dos grupos armados. Inclusive, muitas meninas engravidam, o que pode dificultar a sua volta à vida civil pois seus familiares não as aceitam mais. Vale ressaltar que muitas crianças se encantam com o poder adquirido ao fazer parte do grupo armado. Tal poder se traduz tanto em joias e roupas sofisticadas quanto em posições de liderança assumidas dentro do grupo armado. Se por um lado o poder e as festas, nas quais bebida alcoólica e drogas são disponibilizados em grande quantidade, encantam algumas crianças, a violência e o medo de ser morto são elementos constantes no dia-a-dia das crianças-soldado.
Ao final da guerra, quando liberadas dos grupos armados, a maioria das crianças passa por um processo complexo de reintegração à vida civil coordenado pela UNICEF. Nesse processo, tanto a criança quanto a comunidade atingida pela guerra são preparados para esse novo momento, um momento de recomeço e reconstrução emocional e física. A criança passa por entrevistas com psicólogos, assistentes sociais buscam garantir o retorno dessas crianças a suas famílias de origem e à escola, e muitas dessas crianças, especialmente as mais velhas, recebem treinamento vocacional.
Um dos principais desafios desse programa de reintegração das crianças à vida civil é considerar e responder adequadamente às particularidades das experiências infantis e às demandas de cada criança. Ou seja, é preciso falar com e, principalmente, ouvir a criança. Não basta insistir que a criança retorne a sua família de origem se a criança, durante o conflito, formou uma nova família. Não basta investir no retorno à sala de aula, se aquela criança precisa trabalhar para sustentar sua nova família. Enfim, enquanto a UNICEF insistir que essas crianças são essencialmente vitimas da exploração do adulto e que, por serem ainda “imaturas”, não são capazes de identificar o que é bom para elas mesmas, tais programas – apesar da boa vontade dos profissionais em campo – reproduzirá erros banais e silenciará a pluralidade de experiências infantis.
Assim acredito que devemos nos desafiar e problematizar as fronteiras que definem a “criança normal”, nos permitindo, então, abrir espaço para outras formas de ser em mundos que não terminam onde estamos tão acostumados a traçar os limites com tanta elegância e violência. Nesse sentido, gosto de pensar as crianças entre fronteiras, que desafiam os limites da infância normal, questionando as ideias já naturalizadas de criança e também do adulto. Acredito que dessa forma podemos perceber, pensar e compreender as particularidades das experiências infantis sem considerá-las necessariamente desviantes. Ao reconhecer as capacidades e limitações das crianças-soldado, seremos, então, capazes de protegê-las com responsabilidade.
Pode parecer tentador estabelecer um paralelo entre as crianças – soldado e as crianças do trafico, que vivem no Brasil. Por que sim, por que não?
Se por um lado, parece impossível não comparar as crianças-soldado – crianças armadas, desempenhando atividades criminosas e que estão muitas vezes sob efeito de drogas – às crianças envolvidas com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, por outro, a realidade desses dois grupos é muito distinta. Primeiro, o contexto no qual elas vivem e as formas de violência com as quais convivem e participam é muito diferente. Além disso, a forma de organização dos grupos armados e o modo de recrutamento dessas crianças são bem diversas. Nesse sentido, qualquer comparação entre esses dois grupos de crianças demandaria uma simplificação enorme dessas experiências infantis que acredito não valer a pena. Não só não vale a pena como também silenciaria a complexidade dessas histórias na busca por identificar pontos em comum entre esses grupos de crianças.
Assim, o que acredito ser muito importante ressaltar tanto em relação às crianças-soldado quanto às crianças envolvidas com a violência armada do Rio de Janeiro que tais experiências não devem ser vistas ou pensadas através dos rótulos seja o da vitimização ou da associação dessas crianças a seres monstruosos. E, fundamentalmente, essas crianças não devem ser compreendidas por meio da lente da patologia que as apresenta enquanto necessariamente desviantes em relação a um tipo ideal de “infância normal”.
Fonte: Papo de Pracinha