Crianças de navegação

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Por Ghandy Pioski

Aos meninos de mil brincadeiras
Sebastião e Constantin

Por ocasião de uma visita ao projeto território do brincar tive a oportunidade de ver crianças do Maranhão. Crianças de navegação.

Na praia de Oiteiros, litoral oeste do Maranhão, uma Amazônia costeira ainda conserva alguns de seus traços. Tanto na flora e sua generosidade de espécies dos alagados e baixios, quanto nos hábitos do povo, no tempo lento que esgueira-se preguiçoso por entre as horas quentes. Também na manufatura diária e calma dos fazedores de cofos, dos artesãos da pescaria cosendo fios, das quebradeiras de babaçu, dos carpinteiros navais e casas de farinha. A fala é mansa e cantada, cheia de diminutivos. Uma fala que apequena ainda mais as crianças, os apelidos, as coisas. A fala do caboclo faz do mais pequeno um “pequenininho”; faz do carro de bois carregado, abarrotado, amontoado de mandioca um carro “carregadinho”; o rio na cheia está “cheinho”, grande de águas; até o tudo, essa potencialidade do todo, quando usado para abarcar o que há, é “tudinho”. E assim quase tudo o mais de grandezas ganha o carinho da pequenez, o senso da mansidão, do que pode ser bom e íntimo, de maior proximidade.

As coisas das crianças então, especialmente ditas pelos velhos, são invariavelmente tratadas nos diminutos da semântica. Assim – com crianças – é em quase todo lugar. Mas neste Maranhão de muitos pretos e povo aquilombado a tonalidade da fala ainda emana das velhas escravas, mães tanto de filhos cativos como de filhos dos brancos. Uma fala sinuosa da sonoridade Crioula dos dialetos de Angola, Moçambique, Zaire e Guiné. De mitologia Banto. Uma fala que se especializou, familiarizou-se, ganhou intimidade com os timbres dos “m” e “n”. Cheia das seivas maternas, de mar, de mãe, de mangue e Nanã. Uma fala que se aconchega com humidade no que é oco, que ocupa o vazio, seivosa, aquífera.

Gente de diminutivos só poderia gostar de cantar lunações. De festejar no sereno das estrelas. De afinar seus instrumentos na noite pelo fogo das fogueiras. Festas que são óperas do povo, enraizadas no drama do nascimento e da morte, como o Bumba Meu Boi. Mas que são poderosas de sensualidade comunitária regida pelas mulheres dançando ao som da trindade de tambores compridos, fálicos, que muitas vezes são apoiados entre as pernas dos tocadores, como o Tambor de Crioula. Ou de aglomerado promíscuo, como as circularidades de corpos unidos, untados de suor, espremidos uns nos outros do Cacuriá. Das encantarias do tambor de mina, uma delas guarda o Rei Dom Sebastião em seu palácio sob os montes nômades de uma ilha, e nas noites de lua o santo rei encantado surge em forma de touro por sobre os lençóis de areia.

Nem todas essas festas estão em Oiteiros, nem todas as encantarias são desse lugar, mas permeiam o timbre, o tom das ideias do povo mais velho daquela região. Gente herdeira do palmo que liga seus avós a um tempo ainda mais mítico do velho Maranhão. Coisas que não se veem gratuitas no dizer, nem se captura como um troféu de caça, um pássaro exótico. Mas abrigam-se tímidas na gratidão silenciosa por um bom dia de pesca, na alegria em celebrar o mês de São João, na virada de tambor no terreiro de mina.

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A vida prossegue ainda calma nesse lugar. Mas não livre das mazelas; muito menos impune às rupturas. Basta passar na porta da escola para ver contundente na arquitetura o traçado que separa a vida comunitária, sua natureza, os pescadores e seu conhecimento, a carpintaria naval e seus mestres, os tantos artesãos e seus saberes ativos na economia do lugar, de um projeto educacional alienante, de razão obtusa, de salas e paredes muito estreitas e de costas para o mar.

Os meninos de Oiteiros falam com naturalidade, quando conversamos, por entre as brincadeiras de navegar, sobre a escola. Quando falamos das matérias que eles mais gostam, dos professores mais “legais”. Revelam-nos o que vivem desaprendendo, a precariedade cultural na qual estamos afundados. Um deles explica o conteúdo atual das “aulas práticas” de artes: desenhar semáforos. O outro, depois de uma manhã inteira de brincadeira, esculpindo proa e polpa, quilha e mastro nas proporções corretas de seu pequeno barquinho, diz que não aprende nada de matemática, não consegue saber pra que serve aquilo tudo. Um terceiro, o mais esguio e maior interessado em afinar sua nau, diz gostar de geografia, mas ainda não estudaram nada, na sala de aula, da exuberante região deste pedaço único – de Amazônia costeira – do mundo em que vivem.

Escola lá; vida de verdade cá. A vida verdadeira, na educação de massa, nos índices de aprendizado, só existe no futuro. Aprender abstrações para no futuro ser.

Mas a brincadeira, o lugar real de viver, esse não pode esperar. A escola das almas, a oficina da criação, a engenharia de pontes que interliga os saberes, essa não espera e acontece todos os dias nos quintais, nos barcos ancorados na praia, na vida real das crianças. Brincar é de fato real e muito agrada as crianças, pois se sabe conhecimento, tem significância, tira seu substrato da vida palpável, aplica a visão e toda sua subjetividade para o pulso da comunidade, para as artérias do trabalho, constrói-se afetiva e comum a todos. Brincar é como um soro silencioso, gotejante, invisível, percorre por dentro, ensina por via venal os modos de apreender o sumo do mundo.

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Um excelente exemplo, uma experiência, um ancoradouro ativo de autoinstrução para as crianças – contundente para nossa reflexão – encontramos em Oiteiros.

De Portugal à quarenta anos atrás um jovem marinheiro sonhou em atravessar o mar. Português sonhando em atravessar o mar não é coisa de hoje. É coisa consanguínea do desejo e do destemor em encarar possíveis desventuras como aventuras inesquecíveis. O senhor Manoel, fugindo da ditadura de Salazar no final dos anos sessenta, construiu um pequeno barco e deslizou clandestino, numa noite de estrelas, da baia de Cascais até a costa brasileira. Depois de uma série de desmesuras e inclusive um naufrágio, aqui ficou. Um carpinteiro de barcos, antes nômade e algumas vezes náufrago é até hoje um degredado. Em seu degredo aportou em Oiteiros e lá vive até hoje. Construiu na beira do mangue seu pequeno estaleiro de catamarãs e outros tipos de veleiros, influenciando a, pelo menos, duas gerações aquela costa pesqueira do Maranhão.

A chegada do senhor Manoel agregou à vida dos pescadores um novo tipo de embarcação, desconhecida na região. Mas também à vida das crianças imantou-se um novo sonho: construir essas naus de duas proas, leves e velozes, engenhosas, e com jeito mais arrojado de navegar. Dos rescaldos e sobras do estaleiro os meninos e algumas meninas começaram a fazer seus catamarãs. O dono do lugar nunca os impediu de andar ali às bordas vendo e aprendendo com os olhos.

Daí alguns tantos meninos, hoje adultos, fizeram do estaleiro sua escola, quando a outra escola, a que se diz de verdade, não atrapalhava. Uns poucos carpinteiros que aprenderam com seu Manoel também foram meninos construtores de catamarãs. Hoje nas horas vagas ensinam seus filhos a melhor bolear suas naves de mar.

Criança é assim mesmo: acostumada a andar às bordas, a pegar pelas beiradas, a se instruir com os olhos espichados de longe, a ver de luneta quando não é permitido se aproximar.

Crianças seguem como piratas, à revelia dos ditames e reprimendas, aprendendo de assalto, na marra, na vontade. Uns são dos detalhes, outros da forma geral. Uns sabem mais nós, outros melhor entalham. Cada um pega como pode dos sobejos do trabalho adulto. Seguem assim vasculhando o corpo do barco, entendendo sua anatomia e a serventia de cada peça, as consequências de cada função. Fazem muitas sínteses. Tudo precisa funcionar.

Não é como desenhar semáforos na aula de artes, empurrando nas crianças uma noção grosseira de cidadania, numa cidadezinha que nem semáforo tem. É, ao contrário, premente aprender sobre a realidade do vento, pois ele é energia ativa, real na hora de navegar; não safa quem vive de abstrações distantes; age, tem força, emborca o barquinho, quebra o mastro, não o deixa fluir, o impede de conquistar.

Criança é assim mesmo: quer a verdade do mundo. Seu impulso não é alienante, seu faz de conta é puro devir; é real em atividade, mesmo que imaginal. Por isso é dada às experiências e de perguntas práticas. Mesmo quando quer saber se a lua não se sente só e com frio. Pois aí mora um interesse real. Prático sobre a realidade do outro, ainda que o outro seja tão diferente.

Assim os meninos em sua escola estaleiro trabalham e absorvem em 360° o que acontece no ofício do brincar. Se não tem todos os nomes das peças de uma embarcação na memória, ou se não sabem os nomes de todos os tipos de embarcação da região, conhecem de muito longe as linhas que diferenciam na distância do mar um catamarã de uma biana, uma curiaca de um bote. Conhecem de ouvir dizer as distinções de manuseio, as capacidades de força, a leveza, a diferença do enfibrado para o emadeirado. Sabem do peso do enxó, e da importância dos sargentos na prensagem dos cascos.

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As brincadeiras de embarcação são quase uma luteria. As construções devem ter simetria para que depois seja possível afinar o instrumento. Violão torto, difícil, quase impossível será de afinar. Barquinho de mastro além das proporções não suportará o peso das velas. Leme frouxo não terá precisão de equilíbrio. Bolina leve e curta não sustentará o peso de fundo que apruma o barco no mar.

O resultado do que é feito, só depois se sabe o efeito. Ao fim de uma manhã de construções pode se esbarrar com um vento muito forte. Por melhor que tenha sido o empenho em bem fazer haverá necessariamente que afinar, afinar e afinar o barquinho para que ele atinja o centro de todo o objetivo: singrar com leveza as águas. Fazer barquinhos é se imaginar cortando, sulcando, laminando águas. Menino fazedor de barcos tem na proa de sua imaginação uma hidrodinâmica afilada, capaz de correr por entre as águas sem se ater, com atrito mínimo, deslizante, de guia livre, esquiva do peso móvel do mar.

Na obsessão em afinar os meninos desenvolveram eixos móveis. Com chumbadas – restos de chumbo das pescarias ou de peças de automóvel antigo – criaram um tipo de peso central para o barco. Peso fixo na ponta da bolina. Bolina é uma espécie de quilha central, uma guia, que se fixa em alguns tipos de embarcação. Esse peso de chumbo, que só tem nos barquinhos de brinquedo, faz contrapeso com o mastro e ajuda a manter as nauzinhas sem virar. Para isso há toda uma preparação de fundição. Com fogareiro, brasas, lata e chumbo, derretem o metal e o atiram líquido num molde – um buraco ovalado, em forma de casco para fendar as águas – feito na própria terra. Aproveitam o chumbo ainda quente e mole e fincam uma das pontas da bolina de madeira bem no centro do metal. Esperam secar e está pronto o eixo.

Além dos trabalhos de fundição, a brincadeira se enriquece em conhecimento químico com os trabalhos de revestimento para a durabilidade das madeiras e maior ergonomia do barco.

Os mais ávidos buscam pelas mesas do estaleiro as sobras de resina do trabalho dos carpinteiros. Resina ainda amolecida serve para recobrir a madeira especial e flutuante (uma raiz leve) dos cascos dos barcos. Ou seja, fibram seus catamarãs. Mais velocidade ele ganha, mais deslize, mais durabilidade, mais brilho. Mais brio de arte o menino artesão erige. Status natural, eleito pelos outros, reconhecido por todos, especialmente os menores, como o professor da moçada. Eis a escola!

Pois bem, seu Manoel não é nada professor, nada interessado nas brincadeiras dos meninos, nada ouvidor de sonhos. Mas de tanto trazer e formar calafates, marceneiros, torneiros para seu estaleiro, de tanto ouvir mestres de barcos, de tanto buscar facilitar a vida da pesca artesanal gerou uma escola livre. Pois as crianças circulam ali e oblíquas de audição, visão e aprendizado vão coletando, quase invisíveis, o conhecimento vivo que no verbo e no braço se transmite. Um lugar de acesso oral e braçal ao conhecimento. O mais informal possível; mais palpável do que isso impossível.

O senhor português, Manoel, provou, sem pretensão qualquer, que a comunidade é uma escola; que a escola deveria saber-se comunidade. Não fez do seu estaleiro uma instituição de aprendizado, mas outorgou liberdade para as crianças verem, frequentarem, aprenderem.

Criança é mesmo assim: vive de ver, de tocar, de sonhar sobre os fundamentos, as estruturas da vida material. Quando tem uma brecha, por entre uma fenda do fazer adulto, rápido penetra, pega o que quer, e segue contente, dona de pequeninas vitórias em sua refazenda. Pirata dos cochilos do fazer adulto.

Seu Manoel não é um acolhedor de crianças, sensível a seus interesses. Não fica o tempo todo mostrando tudo, ensinando, dizendo que isso ou aquilo é bom e belo de fazer. Seu Manoel apenas deixa e não se importa com suas presenças, e as crianças “se viram”. Levam “carão” por pegarem o que não devem. Não se intrometem quando não são chamadas. Caso se intrometam, sabem que estão sujeitas a receber uma reprimenda nem sempre gentil. Por isso mesmo, exatamente por isso seguem mais argutas, atentas, ágeis, ávidas para o momento certo. Não se mimam em seu fazer e muito menos em sua vontade.

Acreditemos, criança é assim: sabe sonhar melhor a partir da matéria conquistada. Aprende mais fundo quando luta, pela prática alcançada. Sonha mais ao centro pelas substâncias do trabalho, do labor humano. Vivem como o poeta, fazem plástica, inversão, subversão da vida material. Drumond, um trabalhador do verbo, sabia fazer flor nascer no asfalto.

Criança é mesmo assim: gosta de aprender como quem viaja. Sempre algo novo. Nem importa tanto para qual lugar. Contanto que parta e chegue. E, novamente depois de chegar, partir. Aprender e recomeçar, novamente aprender e outra coisa recomeçar. Aprender fazendo, surtindo efeitos, fazendo ecos e ruídos, concebendo, construindo, liberto pra desfazer e desdizer.

Liberto como sonhou Quintana deve ser o aprendizado, fugidio sempre do eterno “mesmo lugar”. Deixo-vos com o poeta – poetas com muito menos dizem mais – em seus Preparativos de Viagem, propondo a vós, com isso, uma metáfora da vida escolar.

A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer
Trazendo coisas que deviam ficar
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! – desde que não seja
Este eterno mesmo lugar…
E em vão o Pai procura assumir o comando:
Mas acabou-se a autoridade…
Só existe no mundo essa grande novidade:
VIAJAR!

Fonte: Página de Ghandy Piorsky