Conheça uma experiência de colaboração e auto gestão possível: a Catete 92

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Por Sallisa Vasco

Tem um lado importante e muito novo na nossa cultura que é o convite à co-responsabilidade, me disse a designer Clarice Goulart. Desta ideia conversamos sobre o que temos visto: a colaboração como uma chave para o fazer.

No Rio de Janeiro identifico diversos espaços culturais em que é fácil se sentir em casa. Aliás, muitos são mesmo uma casa, com diversos graus de coletividade e colaboração.

Ao acaso conversei com Augusto Gutierrez.  Ele participou, entre os anos 2014 e 2015 de uma experiência colaborativa chamada Catete 92, um lugar de construção coletiva de projetos, que vai do cafezinho ao aluguel, e que agora compartilha algo dessa experiência com os leitores do Astrolábio:

Augusto, tem uma frase que diz “ninguém faz nada sozinho”, você acredita que é assim mesmo?

Toda generalização pode deixar de fora alguma coisa. Eu acredito que estamos em uma era em que tem mais oportunidades para quem faz junto do que para quem faz sozinho. Quem faz sozinho na minha visão a tendência é ficar cada vez mais isolado, cada vez com mais dificuldade de fazer as coisas fluírem, vai ficar sem perceber quais são as oportunidades que estão ao seu redor,  interagindo menos e consequentemente com menor possibilidade de fazer chegar pra você o que você precisa, e oferecer para o mundo, o que o mundo talvez precise.

Como começou o sistema colaborativo do Catete 92? Quem está envolvido? Quais são os projetos realizados?

Acho que é possível ouvir várias versões das pessoas que fundaram o Catete 92, mas na verdade o que muda um pouco é de onde a história veio, por isso vou te contar de onde ela veio da minha parte. Nós fomos um grupo de aproximadamente 5 a 7 pessoas , algumas mais próximas e outras que chegaram depois. A ideia partiu de uma proposta em criar uma casa que pudesse ser aberta, que ela pudesse ser uma plataforma para acolher diferentes tipos de projetos, de ideias, de usos, que ela pudesse ter como valores principais, acontecendo lá dentro, a co-responsabilização financeira pelo espaço, a autogestão, e a autonomia.

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A gente queria construir um ambiente de confiança, e a gente depositou essa confiança antes, então ao invés de sair pedindo a confiança das pessoas, nós depositamos essa confiança nas pessoas, como forma de pagamento dos dois primeiros aluguéis da casa, que com contas dava em torno de 8 mil reais, investido como oferta mesmo. E não só isso, nós também equipamos a casa e convidamos as pessoas para usarem ela de forma colaborativa de forma autogerida. Isso não significa um usufruto gratuito, mas que todos os custos da casa seriam usados de forma aberta e transparente e que todos que participassem ou frequentassem a casa, poderiam e seriam convidados a contribuir de diversas maneiras, sendo a financeira uma forma bastante importante, já que precisaríamos cobrir o aluguel.

Então, essas pessoas frequentavam a casa com bastante frequência, mas não havia residentes. O que aconteceu foi que a partir do terceiro mês a casa começou a se pagar com contribuições espontâneas das pessoas que iam lá e deixavam o dinheiro em um pote. Nós também criamos uma plataforma online em que era possível agendar o uso da casa sem pedir autorização, simplesmente marcando na agenda o nome do evento, quem era a pessoa responsável e uma breve descrição do evento e se era evento aberto ou fechado. As pessoas também ganhavam acesso a chave da casa, então assim que elas entravam na casa elas podiam pegar a chave e fazer uma cópia e ficar com uma cópia da chave, sabemos que foram centenas de chaves distribuídas. Haviam coisas de valor dentro da casa, mas nunca teve nenhum tipo de incidente, nenhum roubo, inclusive todo dinheiro arrecadado na casa ficava dentro da casa e então  nós trabalhamos em um nível de confiança extremo e foi assim durante 1 ano e meio, em que o experimento funcionou.

Como a casa era uma plataforma, ou seja, era um espaço para as pessoas criarem, ela não tinha projetos autorais dela própria, mas diversos projetos acontecendo. E não havia um líder ou um grupo privilegiado. Para se ter uma ideia, no último mês de funcionamento da casa nós tínhamos uma média de 250 eventos agendados. Muitos projetos começaram ali e se desenvolveram ali e a casa é um belo exemplo de como fornecer para uma comunidade criativa um espaço de ativação de seus projetos para que eles possam ser feitos de forma conjunta com abertura para inspirações cruzadas.

Você acredita que essa experiência seria possível sem o sistema colaborativo?

Tem uma grande crítica, na verdade várias críticas de gente que assumiu que o sistema era aberto e autogerido. Ao mesmo tempo isso não acontece de uma hora pra outra. Então o que eu posso dizer que é se nós não tivéssemos depositado confiança, criado uma agenda, deixado uma conta específica para pagamento, deixar um pote de dinheiro, iniciado o espaço, a experiência não teria acontecido da forma como foi. Com o tempo  nós sabemos que tem uma curva de aprendizado em que passamos. No começo a maioria das pessoas não acreditava muito bem, desconfiavam dessa coisa de usar a chave e sair usando sem pedir licença, algumas pessoas traziam seus hábitos de fora, que é usar o espaço e ir embora sem arrumar e limpar o que usou, e tem também as pessoas que querem fazer o uso mais utilitário do espaço, enquanto a gente estava lá querendo fortalecer a rede.

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Nós observamos nesse breve período de tempo em que funcionou a casa, que muito logo as pessoas começaram a se dar conta que não tinha gente pra limpar, então precisavam organizar a própria sala quando terminasse o evento, porque quem chegasse na sequencia ia querer o espaço limpo. Aos poucos as pessoas foram se dando conta, isso demorou mais, não foi rápido o processo, algumas pessoas se deram conta, que o Catete 92 era mais do que uma casa onde eu pudesse dar o meu curso ou meu workshop, a minha oficina, era um espaço de convivência e de encontros, de conhecer pessoas novas, de compartilharem um projeto, de ofereceram ajuda, de pedir ajuda, de oferecer algumas coisas e de aprender coisas. As pessoas que sacaram esse espírito foram muito longe, inclusive foram essas pessoas que “transbordaram” o Catete 92 para uma outra casa, quando tivemos que fechar por causa de um conflito com os vizinhos. Então foi um bom exemplo da resiliência e de como apropriar das pessoas. Foi proposto um sistema aberto, que foi sendo apropriado e foi sendo desenvolvido por todos que queriam desenvolver, não tinha um objetivo de chegar em um lugar específico, a proposta é mais de um processo coletivo. E assim foi até o último dia útil. A casa fica em uma vila residencial e a gente acabou não conseguindo dialogar com os vizinhos, e por respeito a eles resolvemos fechar acasa: se a gente não consegue respeitar os vizinhos não faz sentido a gente lá.

“(…) a melhor coisa que alguém que quer escala pode fazer é cuidar desses valores ficarem bem firmes e fortes dentro de si, a ponto deles virarem exemplos na prática, exemplos que são a extensão desses valores (…)” 

Colaborar é contribuir, “mão na massa”, fazer parte, prestar ajuda material e financeira. Em algumas famílias a experiência colaborativa acontece e funciona, todos se ajudam de diversas maneiras, mas como ampliar a colaboração para o bairro, para a cidade, para a vida de outras famílias, por exemplo?

Em relação a ampliar para bairro, cidade… Eu carrego sempre comigo que em função dessa vontade de escala que afeta toda sociedade… pra mim isso é uma ansiedade. Acho que não faz sentido alguma coisa escalar, porque nada é de fora pra dentro, principalmente essa questão ampla e profunda que envolve valores. Eu acredito que tudo muda a partir do exemplo. Não há nada mais poderoso que possa afetar uma casa, uma família, um bairro, uma cidade que não o exemplo. Isso é bem nítido. Temos exemplos de pessoas que saíram fazendo sem se preocupar se estavam sob os holofotes ou ganhando alguma projeção com isso e que assim foi acontecendo. Eu, na minha humilde opinião, acho que a melhor coisa que alguém que quer escala pode fazer é cuidar desses valores ficarem bem firmes e fortes dentro de si, a ponto deles virarem exemplos na prática, exemplos que são a extensão desses valores internamente. E a partir desses exemplos influências vão acontecer inexoravelmente em vários aspectos da interação dessa pessoa com a sociedade, com a família, com os amigos. Eu acredito muito do partir de si pro mundo, e não de fora pra dentro.

Sobre o tema da possibilidade de fazer de forma diferente, colaborativa e sustentável, vale muito a pena assistir ao vídeo em que a Lala Deheinzelin fala sobre economia criativa.

Saiba mais:

Catete 92