Rio de ágoras

Conversações sobre a cidade do Rio de Janeiro e seus mananciais históricos

Por Ana Emília

Os cantos da cidade do Rio de Janeiro, suas vielas, becos, ruas bem como a sinfonia de narrativas e vivência de seus habitantes adensam a história.  Muitas vezes ofuscadas pelas grandes narrativas, os espaços periféricos e os personagens do cotidiano carioca não ganham as páginas dos nos livros de história e não compõem o acervo de documentos e imagens da dita história “oficial”. Muitas vezes inauditos, os subúrbios e a sub-urbem  como parte da cidade de São Sebastião. Mas o que há de tão encantador nas ruas? E o que há de tão encantador nas histórias cotidianas? As miudezas ou as micro histórias nos levam a revisitar os fatos e reler as entrelinhas dessa cidade em fluxo um cotidiano passado que é matéria para os territórios de circulação de saberes do presentes.

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Passada de geração à geração, no boca a boca da vizinhança e nos espaços de socialização como os botecos, essas histórias periféricas resistem e reexistem, adquirindo novos contornos, trasbordando a orla e as imagens postais já saturadas. Luiz Antônio Simas em parceria com o o coletivo carioca Norte Comum, articularam encontros nesses espaços de troca. Em busca dos subúrbios e das histórias renovadas que se constroem cotidianamente nos territórios e comunidades culturais da cidade do Rio de Janeiro o projeto  “Ágoras Cariocas” percorre bares e botequins da cidade promovendo debates com habitantes locais. Esses resgates da memória urbana istalam-se como  um espaço de escuta e convivência permeada por fazeres.

Abro aqui a conversa que tive com Simas sobre as Ágoras Cariocas:

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1) Como surgiu a ideia do Ágoras Cariocas? Onde foi o primeiro encontro? E qual foi o assunto central desse encontro?

O Ágoras Cariocas surgiu de um encontro em uma mesa de um botequim; o Bode Cheiroso. Eu e os amigos do Norte Comum tivemos a ideia a partir de um texto que saiu no meu livro “Pedrinhas Miudinhas”. Nele, eu falo do botequim como uma espécie de ágora; um local de discussões, encontros, afetos e tensões entre os frequentadores. Acho, para ser sincero, que não houve um assunto central. Era um encontro de amigos, uma conversa de bar. E, em conversa de bar, a gente fala de tudo e aparecem dez ideias. Nove morrem na própria mesa. No meio desse encontro fraterno, a ideia do Ágoras foi tomando corpo e, por incrível que pareça, foi concretizada.

2) O subúrbio carioca está sendo foco dos encontros do Ágoras durante um bom tempo.  Porque é importante estar nos locais que sediaram e sediam a história a ser tratada nas aulas?

É importante dizer que nós resolvemos fazer o Ágoras na Zona Norte pela razão, a princípio, mais simples do mundo: somos moradores da Zona Norte; estamos deste lado do túnel e é aqui que trocamos experiências. Estar no local é fundamental pelo seguinte: o Ágoras não acredita na possibilidade de se levar cultura a um território. Acreditamos que o território produz cultura, permite a circulação de saberes e elabora maneiras de invenção dos mundos. E é um projeto que só tem sentido a partir da interação com a população do local. Além disso, trabalhamos com a perspectiva de que o conhecimento pode circular em qualquer espaço; rompendo assim com a exclusividade da sala de aula como centro de elaboração de saberes. Nós não aguentamos mais, e o Ágoras é um modesto grito contra essa ideia, o discurso da “missão civilizatória” de iluminados que interagem para ensinar alguma coisa aos “bárbaros” desprovidos de cultura.

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3) A tradição oral, atualizada constantemente, além de modificar rituais urbanos cotidianos, também dão novos contornos às histórias documentadas. A meu ver as aulas/conversar parecem seguir essa via de mão dupla. A população local participou dos encontros que fizeram até agora? Aconteceu alguma interferência local que te marcou ou que de certa forma atualizou a história do local retratado ? Como isso aconteceu?

O Ágoras, na verdade, é um trabalho de escuta do local. Eu não chego em Quintino, por exemplo, para contar a história do bairro a quem já vive ali. A turma do Norte Comum faz um trabalho de interação com o local que é sempre anterior ao encontro do Ágoras. No dia do encontro, faço uma introdução sobre o sentido de se pensar o território como pertencimento, e o microfone é aberto para que as pessoas do local contem suas histórias, elaborem narrativas, redimensionem lembranças, mostrem fotos, cantem, etc. Tudo isso é registrado. Esse formato foi se desenhando aos poucos, já que tudo para nós é também aprendizado e surpresa. Em várias ocasiões a interferência local me surpreendeu.

Um exemplo é o caso de Honório Gurgel, quando o relato das pessoas sobre a experiência do território apontou para uma construção de identidade ligada, por exemplo, ao carnaval do bairro, que eu desconhecia completamente. Impressionou-me também o sentido de pertencimento aprofundado dos moradores da Leopoldina e a relevância do samba para a construção de laços de sociabilidade no Engenho de Dentro. Essas percepções vieram a partir da escuta.

agoras em Honório Gurgel, Rio De Janeiro, Brazil.

agoras engenho de dentro

4) O Rio é uma cidade que, ao mesmo tempo, aterra suas histórias e tece crônicas fundadas na transgressão da mesa de bar. Durante o desenrolar do projeto Ágoras Cariocas os bares foram protagonistas em diversos encontros. Na sua opinião o que representa esses lugares na história da cidade do Rio?

Acho que o Rio de Janeiro não pode ser pensado sem que levemos em consideração que a nossa História é marcada por termos sido o maior porto de entrada de gentes escravizadas que o mundo conheceu. Dentre as várias cidades que o Rio é, a que considero mais marcante é essa “cidade de pequenas áfricas” oriunda da diáspora. A experiência da escravidão é essencialmente fragmentadora de laços, destruidora de identidades, aniquiladora de vida comunitária, “coisificadora” de gente. Neste sentido, houve a necessidade, por parte da grande massa de descendentes da diápora, de se inventar, reconstruir e redimensionar estes laços aniquilados. E o espaço de invenção de sociabilidades foi o espaço das ruas, dos terreiros, das rodas de samba, das casas de angu (os zungus) e dos botequins.

Isso marca o Rio de Janeiro, pensado em dimensão histórica, como uma cidade de rua. Estes lugares, portanto, são pontos de referência que permitiram, nas frestas do poder instituído e da coerção de projetos civilizatórios que desqualificavam os saberes não europeus, a elaboração de experiências de reinvenção do mundo.

agoras penha Parque Shanghai.

5) O Norte Comum nos últimos anos contribuiu para a formação e desenvolvimento de uma rede de coletivos cariocas e também adensou os debates sobre a cidade do Rio e seus afluentes culturais. O que a experiência das Ágoras trouxe para essa conversa em rede?

Eu acho que a experiência do Ágoras apenas reforça, modestamente, a ideia de que território é pertencimento, cidade é narrativa em disputa e os saberes e práticas de invenção do espaço são cotidianos e extremamente potentes. Na maioria das vezes, estes saberes são imperceptíveis para quem ainda acha que o Rio é apenas um balneário de grandes eventos com um grande cartão postal na Zona Sul. O mais importante do Ágoras, a meu ver, é, paradoxalmente, a sua modéstia. Ele é, antes de mais nada, apenas um encontro de amigos que se reunem para conversar, beber, festejar e, sobretudo, escutar as pessoas. E só funciona por causa disso. O Ágoras não quer ser grande. Ele busca, como costumo dizer, acariciar a pedrinha miudinha da Aruanda.

6) Quais são os rumos das Ágoras para esse ano?

Continuar aprofundando o nosso projeto de escuta do local. Uma das ideias é partir para a Zona Oeste também. O mais importante, todavia, é que o Ágoras mantenha a sua característica mais marcante: ele é um belo pretexto para que amigos se encontrem, as pessoas se conheçam e as experiências sejam trocadas. É assim que a gente faz a cidade e é feito por ela.

Acompanhe as ações no Norte Comum e guarde a data dos próximos  Ágoras Cariocas

E aproveite pra assistir o Simas dar uma palinha sobre a história das africanidades cariocas no Seminário Fela Kuti, que aconteceu na UERJ. Por mais que esse encontro não tenha sido nas ruas, ele falou da cultura viva presente nelas.

No sábado 30 de janeiro de 17h30 às 21h Simas participa da roda de conversa Fios de Prosa do Instituto Tear, Também será lançado o livro “Dicionário da História Social do Samba”, de Simas e Nei Lopes ao som do Samba de Benfica.

link dessa pagina: http://institutotear.org.br/5682