Cartografar infâncias

Apaixonados pelas infâncias do Brasil e suas cartografias afetivas

piao

Por Ana Emília

Brincar é uma das primeiras atividades que conhecemos durante a vida. Não apreendemos nada, nem um valor cultural, nem uma piada, nem uma regra de conduta, nem mesmo uma ordem, sem alimentarmos o nosso imaginário com situações e narrativas que nos conduzam às associações.  Adquirir conhecimento parece ser portanto uma atividade que envolve o jogo ou a brincadeira, um caminho efetivo para que os códigos façam sentido para nós, se tornem mais vivos e provoquem os nossos afetos.

Talvez seja por esse motivo que muitos de nós cultivamos um carinho particular pelas memórias de nossa infância e por nossos brinquedos. Talvez seja por isso que sentimos nó na garganta ao cantar as cantigas de roda entoadas por nossos ancestrais, ao reencontrar com brinquedos e brincadeiras que partilhávamos com nossos amigos.

Mesmo que inconscientes disso, todos nós, de uma forma ou outra, zelamos por nossas vivências infantis. Criamos, na brincadeira de entrelaçar memórias, cartografias afetivas sobre a infância. Lançamos mão dos nossos conhecimentos de criança para propor brinquedos e brincadeiras reinventadas, voltamos a ser criança ao jogando com esse conhecimento fluido e aberto guardado com tanto afeto.

Apaixonado por Arte popular, David Glat é um desses brincantes que guardam esse afeto particular pelas memórias da infância. Investigador e colecionador de brinquedos, criou seu universo lúdico particular. Como fotografo atuante, viajou desde os 20 anos, por cidades e vilarejos do país, conhecendo moradores e artistas de diferentes localidades. Nesse meio tempo, foi pouco a pouco adquirindo brinquedos, até que um belo dia viu seu atelier inteiramente tomado pelas memórias das infâncias populares do Brasil, que inevitavelmente se cruzavam com a dele.

noivos voadores

Seu museu, ao ser visitado por amigos e curiosos ficou conhecido, despertando interesse de grandes curadores brasileiros, como Emanuel Araújo do Museu Afro Brasil, que expôs sua coleção inteira em 2010.

No episódio David argumentou que:

“A coleção era muito particular, incompleta e exclusivamente constituída por objetos de meu interesse pessoal – só tinha brinquedos de menino. De fato, não tinha casinhas, nem mobília, nem bonecas e nem os outros diversos itens que fazem parte do universo infantil feminino. Então ele concluiu: -complete a tua coleção!”

E foi isso que fez David Glat, em outras andanças, continuou ao casar a produção fotográfica com o colecionismo de brinquedos, buscando ampliar seu repertório de referências.

Bichos rústicos - Acervo do Museu do Brinquedo Popular

Imerso na sua constelação de infâncias, Glant observou qualidades específicas de cada brinquedo, criando uma cartografia própria para cada seguimento de sua coleção.Encontrou modos de fazer diferenciados nos brinquedos confeccionados: aqueles feitos pelos artesãos em suas pequenas ilhas de produção e reprodução em série, nos brinquedos feitos pelos núcleos familiares e em pequenas comunidades de crianças – que preserva uma linha dos improvisos criativos e uso de materiais alternativos, e também aqueles brinquedos feitos por artesãos populares, que aliam criatividade e técnica na produção de peças exclusivas.

Ao longo desses anos, muitas pessoas redescobriram sua infância ao tomar contato com os brinquedos de sua coleção. Exposta na 22ª Bienal do Livro de São Paulo (2012) e no Museu de Arte da Bahia (Salvador), hoje ela tem morada física no Museu do Brinquedo Popular.

Alguns não se dão conta dos mapas afetivos das brincadeiras que guardamos, outros levam essa atividade muito a sério, buscando ampliar seu repertório de criança ao brincar e conhecer outras infâncias. O Território do Brincar que ganhou umas das primeiras [link id=”548″ text=”matérias”] do Astrolábio, é um projeto que parte do desejo em resgatar o universo lúdico das infâncias brasileiras.

Filme realizado como parte do projeto Território do Brincar

O mapeamento de Renata Meireles, David Reeks – em companhia de seus filhos – carrega a ideia de que o brinquedo e a brincadeira têm a ver com a vivência da criança, com as relações afetivas as quais falávamos. Aspectos ambientais, próprios da natureza cultural e da geografia de cada território do Brasil.

A partir de uma coleção de imagens e relatos de brincadeiras, os pesquisadores do Território do Brincar encontraram materiais diversos, usados em jogos tradicionais e locais, documentaram jogos corporais e modos de brincar diferentes, recriados no contato entre crianças.

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O desejo por processos educacionais mais arejados ou, arrisco dizer, pelo carinho particular genuíno pela infância, os mapeamentos de brinquedos e brincadeiras não param de crescer. Pensando nessa rede de produtores e documentaristas das infâncias o Mapa da Infância Brasileira, elaborou uma plataforma on-line de mapeamento de matérias e produção de conteúdo sobre a cultura da infância. Uma plataforma colaborativa de aprendizagem que resgata todo o espírito lúdico da nossa criança interna.  Vale entrar nessa rede e se redescobrir em brincadeira com outros pesquisadores e amantes da infância.

São muitas as novas ferramentas e materiais que nos permitem resgatar não só a nossa infância, mas a nossa infância em diálogo com outras tantas infâncias.